Corria o início dos anos 60 quando o meu Pai me proporcionou uma deliciosa surpresa; nos negócios da nossa firma têxtil, comprávamos alguma matéria prima, lã, a uma firma inglesa, sediada no Yorkshire.
Ora tendo um dos gerentes dessa firma ido à Covilhã, o meu Pai combinou com ele uma ida minha a Inglaterra, durante o Verão, para praticar a língua inglesa e também para “desabrochar” um pouco.
A estadia seria a cargo desse senhor, exactamente na cidade de Bradford, perto da firma dele e ele teve o cuidado de escolher uma casa familiar, com quartos para alugar, onde eu também tomava as minhas refeições; pude assim ter um contacto com a verdadeira comida inglesa que adorei, com aqueles molhos magníficos. Ainda por cima e para me ajudar mais, uma empregada da casa era uma rapariguita portuguesa, a Conceição, que tinha vindo directamente da Madeira, para ali; quando começámos a falar, não percebia nada do que ela dizia, pelo que combinámos falar em inglês…Também estava ali de férias, um jovem espanhol de Barcelona, um pouco mais velho do que eu e com quem convivi bastante.
Mas antes, devo referir a viagem, a primeira ao estrangeiro, sem ser Espanha, completamente sozinho. Fui de comboio e aproveitei a companhia de três amigos da Covilhã que iam passar férias a Londres e fomos juntos. Recordo que fomos no Sud Express até Paris,tendo chegado à Gare de Austerlitz e só tivemos tempo de apanhar o metro para a Gare do Nord,
início da viagem até Calais. Ali fomos no ferry, até Dover, viagem nocturna, razão pela qual pouco desfrutei da minha primeira viagem de barco.
Quando chegámos à estação de Victória, separei-me dos amigos e fiquei entregue a mim próprio. Confesso que aquela estação me intimidou, pela sua grandeza
e fiquei sem saber bem o que fazer, já que tinha perdido o contacto do senhor e naquela altura não havia telemóveis. Era o fim da tarde e então reparei num pequeno local de acolhimento e ajuda a turistas; lá me dirigi, expliquei a minha situação e pude observar a magnífica eficiência inglesa: uma senhora começa a fazer telefonemas para aqui e para ali, e passado meia hora chamou-me e comunicou-me que estava tudo resolvido. Tinha falado para Portugal com o meu Pai que lhe deu o contacto do senhor inglês, ela contactou-o e combinou com ele o nosso encontro numa determinada estação, um pouco antes de Bradford, Wakefield. Assim, devia tomar o comboio na linha “x”, às tantas horas, que chegaria às tantas horas a essa estação, onde o referido senhor me esperaria. Como eu não o conhecia, ela deu-me algumas referências a seu respeito tendo feito o mesmo em relação a ele. Devia pois ir comprar bilhete, e depois teria tempo para ir comer alguma coisa, ou na estação, ou ali perto.
Assim, por incrível que pareça, e como sucedeu com Paris, nada vi de Londres. Fiz como ela disse e a viagem foi divertida pois ia num compartimento com uma polaca, um russo e um inglês; os dois primeiros bebiam constantemente vodka e já estavam alcoolizados pelo que foi muito interessante aquele bocado de tempo. Quando cheguei a Wakefield, lá me encontrei com Mr. Joseph, que de carro me levou à casa onde ficaria hospedado em Bradford; foi uma sensação diferente viajar num carro com o trânsito do lado contrário, heheje…
Depois, os dias foram muito interessantes; embora Bradford fosse uma cidade bastante banal e sem grandes atractivos,
eu e o espanhol íamos conhecendo os arredores, com uma óptima piscina em Ilkley, a poucos quilómetros e Leeds, uma grande cidade era mesmo ali perto.
Fartei-me de ir ao cinema ver filmes proibidos pela censura em Portugal, entre os quais o “Dolce Vita” do Felinni e “The Servant” do Losey.
Sempre que podia, Mr.Joseph ia buscar-me para me levar a diversos sítios: fui conhecer a sua empresa e almoçar com a sua família e então fui ver coisas muito interessantes: um jogo de futebol a Old Trafford, em Manchester, entre o United e o West
Bromwich Albion;
um jogo de críquete (uma seca, pois não percebi nada, em Birminhgam), corridas de cavalos, em York, uma cidade linda, linda,
e ainda fomos a Sheffield, Coventry, sei lá mais onde. Coventry tinha a catedral velha completamente destruída durante a 2ª.GG, e a nova, maravilhosa obra de arquitectura, ali perto.
O meu relacionamento com o catalão era óptimo, tendo-me ele convidado a visitar Barcelona no ano seguinte, o que fiz. Não sei porquê, mas hoje penso que ele seria homossexual, mas eu, nesse tempo, ainda não era devasso para descobrir essas coisas, hehehe.
Um mês depois, a falar muito melhor a língua inglesa reuni-me com os meus amigos na estação de Victória para a viagem de regresso a Portugal.
Como não tinha levado muito dinheiro e embora lá não tivesse gasto muito, estava sem cheta, no comboio. Os meus amigos ainda reuniram os últimos trocos para uma refeição baratinha no Sud, mas eu fiquei no meu lugar; o meu espanto quando uma senhora já de idade, muito simples no vestir, toda de preto, com um lenço na cabeça, pensei que era uma emigrante, me perguntou porque não tinha ido com os meus amigos, comer. Eu menti e disse que não tinha fome; ela riu-se e disse-me que pensava num neto dela, mais ou menos da minha idade e que se ele estivesse na minha situação, com fome e sem dinheiro, gostaria que alguém o ajudasse, pelo que me convidava a ir almoçar com ela ao restaurante do comboio; pois não me fiz rogado e imaginem a cara dos meus amigos, a ver-me almoçar no Sud, enquanto eles comiam umas sandocas…
Afinal a senhora era da família Calheiros, mãe do então Conde da Covilhã, e até conhecia pessoas da minha família.
O que de maravilhoso nos acontece numa viagem!
Paris e Londres ficaram adiadas.
P.S. - Só agora e bem recordado pelo amigo Coelho, vi que já tinha referido algo desta viagem no post "Viagens - 2".