Vou dizer por palavras minhas muito pouco sobre esta peça produzida pelos Artistas Unidos e em exibição no S.Luiz, aqui em Lisboa.
Apenas referir que achei a peça soberba em todos os aspectos, que considero Maria João Luiz uma das melhores acrizes da actualidade, que vejo Rúben Gomes a melhorar de papel para papel, que é admirável ver um actor como Américo Silva.
E dizer que acima de tudo e num resumo demasiado simplista e talvez demasiado redutor, que é uma peça sobre essa tenebrosa palavra: o TEMPO.
De resto deixo um apontamento que
transcrevo do programa:
"Uma actriz (Alexandra Del Lago) que
envelhece e enfrenta o desastre de uma vida, longe dos doces anos da
sua juventude. Um rapaz( Chance Wayne) que a conduz de volta à sua
terra natal. É domingo de Páscoa, mas nada vai ressurgir, não
haverá ressurreição. Mas todos procuram voltar a um passado feliz
que um dia teve lugar. Enquanto decorre uma sórdida manobra
política. Uma das peças mais secretas (e problemáticas*) de
Tennesse Williams – e como tantas vezes a derrota perante o tempo,
o derradeiro voo do pássaro da juventude?"
Mas deixo sobretudo um texto absolutamente genial de Jorge Silva Melo, que a propósito desta peça vai além dela e presta uma maravilhosa homenagem aos seus artistas.
Mas deixo sobretudo um texto absolutamente genial de Jorge Silva Melo, que a propósito desta peça vai além dela e presta uma maravilhosa homenagem aos seus artistas.
Mas convém não esquecer aquilo que a modéstia de Jorge Silva Melo
não lhe permite escrever: sem ele não teríamos esta magnífica
companhia de teatro tão bem denominada Artistas Unidos, sem ele, o
teatro português estaria incomensuravelmente mais pobre.
Por isso
mesmo, muito obrigado Jorge Silva Melo.
São tão extraordinários, tão dotados, tão únicos os actores com quem há anos venho trabalhando uma, duas, só três ou quatro vezes, é tão extraordinária a liberdade e a integridade conseguidas nestes já quase 20 anos dos Artistas Unidos. E estava a ver as rugas começarem a surgir, os cabelos brancos a aparecer e pensei: não quero que estes actores a quem tudo devo, a vida, a arte, o amor, tudo, a vida de todos os dias, não quero que percam aqueles papéis que foram escritos para eles, não quero deixar passar o tempo, quero ver a Maria João Luís, quero ver a Catarina Wallenstein, sim, quero ver o Rúben Gomes, quero ver o Américo Silva, quero ver a Isabel Muñoz Cardoso, quero ver a Vânia Rodrigues e o Nuno Pardal e o Tiago Matias e o João Vaz, estes que se têm juntado a nós, sim, quero vê-los decifrarem comigo as tortuosas peças de Tennesse Williams, aqueles papéis que só podem fazer agora, agora que o doce pássaro da juventude lançou voo.
Comovi-me quando li o meu adorado Peter Stein dizer ao jornal Público “nunca quis ser encenador quando era novo, quero só ajudar uns actores”. É tal qual: ajudar uns actores que admiro, encontrar teatros, dinheiro, tempo, colegas, roupas para eles nos darem o que só os actores sabem, lágrimas, risos, suores, no fundo, abraços estreitos durante a noite.
E assim nasceu esta ideia de revisitar Tennesse Williams, fazer “Gata em Telhada de Zinco Quente” em 2014, “Doce Pássaro da Juventude” agora, “A Noite da Iguana” lá mais para a frente, peças de outros tempos, de outros palcos, peças que saberei ajudar a fazer, peças que, garanto, foram escritas aguardando os seus corpos, estas vozes.
Pois só isso agora desejo: ajudar a fazer.
E que cada espectador possa guardar dentro de si a ousadia destes artistas cuja disponibilidade não sei se merecemos.
Assim, voltamos a ver aqui no “Doce Pássaro da Juventude” quase todos os actores com quem trabalhei “Gata em Telhado de Zinco Quente” que estreámos em Setembro de 2014 em Viseu e andou pelo país. E mais alguns que a nós se juntam. Como se fôssemos uma companhia fixa, tivéssemos salas de ensaio, programássemos horas e dias, temporadas e trabalhos. Porque os actores têm dentro de si inesperadas personagens, máscaras, poesias.
Estreada em Nova Iorque em 1959 com encenação de Elia Kazan* e interpretação de Geraldine Page, Paul Newman e Rip Torn, “Doce Pássaro da Juventude” que Richard Brooks filmou em 1962 com quase todo o elenco original
é uma peça desequilibrada, poderosa, desarrumada, insólita em que Williams se debate com as convenções da sua Broadway e avança para campos apenas entrevistos*. Joga técnicas consideradas impossíveis, escreve um primeiro acto que é em si mesmo uma longa peça de duas personagens, desenvolve no segundo personagens e temas imprevistos, abandona personagens, são duas horas de vertigens várias, dolorosas.
E mais uma vez pede ao espectador que partilhe um segredo. “Eu não vos peço piedade, só peço a vossa compreensão – não, nem isso – não. Apenas que me reconheçam a mim dentro de vós próprios, e ao inimigo, o tempo, em todos nós.”, diz Chance Wayne e podia acrescentar com o imenso Baudelaire “hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère”.
Talvez seja esse o seu apelo, tratar-nos como irmãos.
Mas será possível devolver ao teatro aquilo que aparentemente o cinema fixou? Será possível voltar a estas peças sem as cores esplendorosas de Hollywood? Será possível a St,Cloud (cidade onde a peça se desenrola) sem Kazan nem Richard Brooks? Será possível ver outra vez Alexandra Del Lago e Chance Wayne e ver como eles falam mesmo de nós, da nossa cobardia, dos nossos medos, do tal “tempo que passa por cima de nós”? Será possível voltar a pôr no palco estes dilemas, esta ansiedade, esta sofreguidão?
Olha, é uma aposta. E aqui estamos”.
* - não percam a leitura deste
magnífico texto da autoria de Carlos Marques da Silva