Nos tempos da “outra senhora”, o deserto cultural que constituía o nosso país, tinha anualmente um oásis, durante alguns dias, com um acontecimento chamado “Festival Gulbenkian da Música”, e que era da responsabilidade de uma das pessoas que mais fez pelo desenvolvimento da cultura em Portugal, ao longo das décadas de 60/70, Madalena Azeredo Perdigão, esposa do todo poderoso e muito influente presidente da Fundação Calouste Gulbenkian.
Assim, durante alguns anos, pudemos ver e ouvir em Lisboa grandes nomes da música clássica e contemporânea, do canto operático e da dança clássica e moderna.
Aguardado com expectativa pelo público, quando os ingressos eram postos à venda, longas filas se formavam, com horas de antecedência, para se obter os bilhetes que interessavam. Eu era um dos que não faltava e graças a estes festivais tive o imenso prazer de poder assistir ao vivo, no Coliseu, a concertos de grandes orquestras, como a Sinfónica de Berlim, dirigida por Karajan, a um memorável e dos últimos concertos do extraordinário pianista Artur Rubinstein, por mais que uma vez aplaudi o mais famoso par do ballet clássico da segunda metade do século XX: Margot Fonteyn e R.Nureyev, mas também os modernos representantes do ballet contemporâneo de então: Merce Cunningham, Martha Graham, Alvin Ailey e naturalmente Maurice Béjart, que era aliás habitual nos programas do festival.
No ano de 1968, mais uma vez Béjart estava presente, para apresentação do seu último trabalho, na altura, uma versão moderna e perfeitamente assombrosa de “Romeu e Julieta”, com música de Berlioz. Para esse espectáculo, foi necessário desmontar mais de metade da plateia do Coliseu, e em vez do bailado ser dançado no clássico palco italiano, isso acontecia num alargado círculo, dividido em sectores, quais gomos de uma laranla, alternadamente a preto e branco, nessa parte “conquistada” à plateia; aliás todo o espectáculo era dominado pelo preto e branco, incluindo os figurinos dos intérpretes. A conhecida obra de Shakespeare er aqui transformada num fortìssimo libelo anti-bélico (estava-se em plena guerra do Vietnam), que ia num “crescendo” de violência até à cena final, arrebatadora, em que a música era por vezes abafada pelo som da metralha e se ia ouvindo repetidamente o célebre “make love, not war”.
No final, o público estava em delírio.
Sucede que este espectáculo tinha duas datas consecutivas, e eu, afortunadamente, conseguira bilhete para o primeiro dia, 6 de Junho. Claro que a lotação estava esgotada para os dois dias.
Quando os aplausos infindáveis ainda se faziam ouvir, nomeadamente os do camarote presidencial, onde pontificava o “venerando” chefe de Estadp, Américo Tomaz e parte do Governo, eis que Béjart, como sempre de negro vestido, aparece à boca de cena, pede silêncio e numas breves palavras disse o que então era impensável ouvir pùblicamente em Portugal: - que estava muito satisfeito com a receptividade do público português ao espectáculo e que não podia deixar de homenagear nessa noite, um homem, paladino da liberdade e que tinha sido assassinado umas horas antes – Robert Kennedy, um homem, dizia, que sempre fora ao longo da sua vida um defensor das liberdades contra as opressões, e que para ele, Béjart, era uma ocasião única referir esse facto num país governado por uma ditadura, onde a liberdade não existia...e por aí fora...
Claro que, perante estas palavras, enquanto as “excelências” desapareciam apressadamente de cena, o entusiasmo do público, maioritariamente jovem crescia exponencialmente e o impensável aconteceu uma vez mais: o Coliseu a cantar quase em uníssono, a Internacional!!!!
Quando finalmente, se saiu do Coliseu, a rua parecia um comício e a animação era enorme, não só na Rua das Portas de Santo Antão , mas também pelo Rossio e Restauradores. Embora se visse anormal aparato policial, e era já uma hora da madrugada, não houve qualquer repressão policial; mas as consequências foram imediatas, pois ainda nessa noite Béjart foi conduzido à fronteira, e só regressou a Portugal, depois do 25 de Abril, e òbviamente foi cancelado o segundo espectàculo do “Romeu e Julieta”.
Foi das noites mais memoráveis dos meus tempos de estudante universitário, em Lisboa.