Mostrar mensagens com a etiqueta poesia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta poesia. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 21 de março de 2012

21 de Março

Eu sou por norma avesso aos dias mundiais disto ou daquilo, que quase preenchem todo o calendário, alguns deles com notórios fins consumistas, outros por mera idiotice.
Mas também há dias mundiais que respeito, porque têm para mim uma simbologia importante.
E entre estes, o dia 21 de Março é muito especial, pois nele se comemoram dois dias mundiais que me são particularmente sensíveis: o da Árvore e o da Poesia.
E além do mais é o dia do início da Primavera (este ano foi um dia antes, por ser um ano bissexto), a estação da renovação.
Assim, aqui deixo três referências - uma das mais belas árvores desta cidade de Lisboa, no Jardim do Príncipe Real
Uma poesia que quase obrigatoriamente teria de ser de Pessoa, neste caso de um dos seus heterónimos - Alberto Caeiro

"Hoje de manhã saí muito cedo

Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia que caminho tomar
Mas o vento soprava forte, varria para um lado,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.

Assim tem sido sempre a minha vida, e
Assim quero que possa ser sempre --
Vou onde o vento me leva e não me
Sinto pensar."

E finalmente o último andamento da maravilhosa obra de Stravinsky "A Sagração da Primavera" pela companhia de dança da grande Pina Bausch.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Pai

Faz hoje 23 anos que partiste, assim de repente...
Alguns anos antes, quando numa conversa a sós, após te ter dito que era homossexual, deste-me um abraço e disseste-me que se tu não me compreendesses, por seres meu Pai e daí o meu maior Amigo,ninguém me compreenderia, fiquei a saber que além de Pai, ganhara um Amigo, o meu maior Amigo.
E depois, não me deste muito tempo para usufruir dessa Amizade.
Fizeste-me tanta falta, Pai...Fazes-me tanta falta...
Recordo-te como um Homem vertical que sempre pôs a Família à frente de tudo, e por isso, porque eu era da tua Família, não hesitaste em aceitar-me tal como sou, embora isso contrariasse os teus conceitos de vida.
Obrigado, Pai, por tudo o que me deste.

O Pai
Terra de semente inculta e bravia,
terra onde não há esteiros ou caminhos,
sob o sol minha vida se alonga e estremece.

Pai, nada podem teus olhos doces,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as faces.

Escureceu-me a vista o mal de amor
e na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflecte.

Depois... Pergunta a Deus porque me deram
o que me deram e porque depois
conheci a solidão do céu e da terra.

Olha, minha juventude foi um puro
botão que ficou por rebentar e perde
a sua doçura de seiva e de sangue.

O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de a beijar... E o Outono.
Pai, nada podem teus olhos doces.

Escutarei de noite as tuas palavras:
... menino, meu menino...

E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei.

Pablo Neruda, in "Crepusculário"



©Todos os direitos reservados. A utilização dos textos deste blogue, qualquer que seja o seu fim, em parte ou no seu todo, requer prévio consentimento do seu autor.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A actualidade de Botto

Ainda há pouco tempo,na semana passada, referi este mesmo livro, como um dos melhores que já li, no que concerne à literatura gay.
Mas António Botto, foi acima de tudo um grande poeta, que pela sua condição de homossexual foi perseguido e amaldiçoado, tendo por isso partido para o Brasil, onde morreu atropelado.
Este magnífico poeta e também ficcionista (não esquecer um belo livro para crianças "Os Contos"), tem a sua poesia essencialmente contida neste livro "As Canções", de que nunca me canso de ir de vez em quando...
Dele se retira este poema, intitulado "Poema da Cinza" e que ele dedica à memória de outro grande poeta, Fernando Pessoa.
Se o lerem atentamente, poderão nele encontrar muita actualidade, embora escrito há tanto tempo...

"Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão -
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver -
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar -
Num cântico de sonho! e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!"

Adenda: sobre o exemplar que possuo deste livro, ler o meu comentário ao André, na caixa de comentários. E é a que está agora na foto.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Letras gay

É com letras, que se escrevem frases, e é com frases que se escrevem livros. Pegando neste abecedário tão belo, muitos autores escreveram magníficas obras sobre temas homossexuais.
Um deles foi Edmund White,
autor de vários livros que já li e de que gostei (O Homem Casado, Um Belo Quarto Vazio, Esfolado Vivo, Sinfonia a Despedida), escolheu os cinco livros gay de que mais gostou e que são os seguintes:


1. Jean Genet, Notre Dame des Fleurs
2. Christopher Isherwood, Um homem singular 
3. Alan Hollinghurst, La stella di Espero 
4. Edward Morgan Forster, Maurice 
5. Andrew Holleran, Dancer from the dance


Destes, li e gostei muito de três: os de Jean Genet, Christopher Isherwood e E.M.Forster.


Achei interessante estas escolhas e aqui deixo as minhas, sem qualquer ordem de referência, e que não foram fáceis de escolher, até porque foram muitas e de grande valor, as minhas leituras deste tipo.

“As Canções”, de António Botto
“Memórias de Adriano” , de Margarite Yourcenar
“As Amizades Particulares”, de Roger Peyrefitte
“A Sombra dos Dias” , de Guilherme de Melo
“De Profundis” , de Óscar Wilde

Talvez surpreenda a inclusão de dois autores portugueses neste lote de cinco livres, mas considero o livro de Guilherme de Melo, uma pedrada no charco, na altura em que foi publicado e em que o autor conta com o mesmo desassombro com que assumiu a sua homossexualidade, na Lourenço Marques de então, onde era uma referência cultural e jornalística, a sua vida, sem omissões ou medos. Uma belíssima auto-biografia.
Quanto a “As Canções” é um livro de poesia, e penso que devia haver aqui um livro de poesia; sendo Botto, esse poeta maldito, quem, em Portugal melhor soube pôr em verso a homossexualidade sem medo, não hesitei.

Gostaria de vos convidar a deixar aqui, as vossas referências, dos livros que já leram, dentro deste contexto, e de que gostaram mais.
É um desafio, que alguns de vós, penso, não irão recusar.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Livros...

Comecei a ler muito cedo, primeiro os habituais na altura, livros próprios para crianças, como os da Condessa de Ségur (adorava o cão Médor); depois os de aventuras, tipo Emílio Salgari, Júlio Verne e quando entrei na idade adolescente comecei verdadeiramente a interessar-me pela leitura; nos dois últimos anos do então Liceu, li avidamente e procurava ler alternadamente ficção, poesia e algum que outro ensaio. Foi a altura em que descobri a literatura francesa: Camus, Sartre, Gide, Peyrefitte, Prévert e outros; lia muito em francês, graças aos "Livres de Poche" e aos da colecção "J'ai Lu"...
Mas não foi só literatura francesa que me interessou, pois li grandes romances de célebres escritores e de uma forma avassaladora.
Curiosamente, quando entrei na Universidade, o meu interesse pelos livros decresceu, na directa relação com a oferta cultural que vim encontrar em Lisboa: cinema, teatro, concertos, bailado e ópera substituíram a leitura.
Curiosamente,sempre fui comprando livros, que eu dizia, por brincadeira que seriam para ler na minha reforma...
É claro que não deixei de ler, mas a queda foi abissal e também por culpa de começar a ler muitos jornais e revistas, que me levavam quase todo o tempo disponível para a leitura.
E passaram-se anos e anos sem voltar à leitura de livros com interesse real.
Só muito recentemente, se reacendeu a chama e tenho vindo a ler muito ultimamente: muitos dos tais livros para ler na reforma têm sido lidos, mas muitos outros também relidos.
Não sei se vou ter tempo para ler tanta coisa que tenho para ler, pois além do que cá tenho desde há anos, tenho comprado mais e mais.
Só para dar um exemplo, este mês comprei já sete livros: "Nova Iorque, cidade fantasma" de Patrick McGrath, de uma interessante colecção da ASA subordinada ao tema "O escritor e a cidade" (tenho os volumes de Paris, Florença, Rio, Praga e só me falta encontrar o de Sidney); finalmente comprei "O Mestre" do Colm Toíbin, "Como me afoguei" do Jim Grimsley, três livros do David Leavitt ("Dança de Família", "O Escruturário Indiano" e "Colcha de Mármore") e finalmente o último do José Luís Peixoto - "Abraço".
Portanto, muito que ler e literatura que sei vou apreciar.

Ainda falando em livros, o André Benjamim iniciou há uns tempos num dos seus blogs uma rubrica a que deu o nome de "Livros que nunca devia(m) ter lido" em que fala dos seus livros preferidos; ora eu prometi-lhe num comentário que numa postagem minha, falaria dos meus livros preferidos. É difícil a escolha, pois já li autênticas obras-primas, mas há livros, que até podem não ser obras-primas, mas que me marcaram muito.
Se eu tivesse que eleger o livro da minha vida, escolheria sem hesitação "Le Petit Prince" do Antoine de Saint-Exupéry,
pelas imensas vezes que já o reli, pelas imensas vezes que já o ofereci e porque conheço bastantes passagens quase de cor - é um livro para ter sempre à mão.
Se  for ver qual o livro que mais vezes li, depois do "Petit Prince", vou encontrar o livrinho mais "estragado" das minhas estantes, pelas muitas vezes que foi manuseado. Li esse livro, pela primeira vez, muito novo, e porque o seu  autor, Kenneth Martin, o escreveu também muito novo (16 anos), ele teve uma importância enorme na descoberta da minha orientação sexual; trata-se de "Alvorecer", da Portugália Editora, que comprei em 1964, e nunca mais encontrei em português; é a tradução do romance "Aubade".
Um tipo de literatura que sempre me entusiasmou foi o romance histórico, quer em biografia, que em ficção. Dos muitos que li, um deles me entusiasmou sobremaneira, não só pelas suas personagens, mas principalmente pela forma como está escrito. Trata-se, quanto a mim, da obra-prima de Marguerite Yourcenar "Memórias de Adriano".
E finalmente não podia deixar de escolher um livro de poesia; que me perdoem Camões, Pessoa, Florbela, Sophia ou Eugénio de Andrade, mas o livro escolhido é da autoria de um dos maiores poetas portugueses de sempre, o poeta maldito - António Botto - e o livro, claro, só poderia ser "As Canções".
E agora, vou ler um bocado, até adormecer...

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

José Luís Peixoto

Ando a descobrir José Luís Peixoto. Depois de ter lido a sua última obra de prosa - "Livro" -  que não é um livro fácil, principalmente para um iniciante da sua leitura, acabei de ler o seu, suponho, último  livro de poemas "Gaveta de papéis", uma poesia muito diferente do habitual, aqui e ali, "prosa em verso", mas que, no cômputo geral, me agradou.
Deste livro de poesia, seleccionei um poema, que afinal, dá o nome ao livro.


"Agora, já não preciso que gostem de mim.
Agora, tenho mil peças de um puzzle, tenho
uma caixa cheia de molas soltas, duas mãos,
tenho a planta de uma casa, tenho ramos
guardados para o Inverno, e tanto silêncio,
tenho tanto silêncio, bolsos vazios e cheios,
pão, fé, céu, chão, mar, sol, cá e lá,
tenho sobretudo lá, uma distância imensa
feita de planícies estendidas e eternidade
porque eu caminho com vagar ao longo das
estradas, o horizonte é demasiado quando
planeio toda a sua distância sem medo de
nada, destemido apenas, a coragem é um
exército ao meu lado, tenho a coragem
necessária, tenho um lago que reflecte a
noite e a lua quando há lua, uma orquestra
inteira tenho, o som e o silêncio, já disse o
silêncio, repito-o saber quem sou e o que
tenho, tenho uma gaveta de papéis, tenho
montanhas de montanhas, tenho o ar, tenho
tempo e tenho uma palavra que corre à
minha frente, mas que consigo apanhar
e que ainda utilizo no poema."

Um autor a seguir atentamente.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A Língua Portuguesa em Belgrado

O mundo é muito pequeno, e por vezes agradavelmente surpreendente. Estive a passar quinze dias em Belgrado, e como a cidade já não tem quase segredos para mim, procuramos agora preencher o nosso tempo com a ida a locais onde aconteçam coisas interessantes. E o Déjan lembrou-me que estava a acontecer na Feira de Belgrado (um excelente espaço, diga-se de passagem), a Feira do Livro, e que nesta edição, o destaque escolhido, tinha sido a Língua Portuguesa, isto é, de todos os espaços do mundo onde se fala a nossa língua. Claro que logo mostrei interesse em visitar o certame e lá fomos uma tarde. Gostei desde logo da disposição do espaço escolhido para essa homenagem, na parte nobre do certame
e quando ali chegámos contactei um senhor que parecia ser uma das pessoas importantes ali, e que era português, e me informou, muito gentilmente do que se estava a realizar ali, quem estava ou estaria presente e mantive uma muito agradável conversa com ele, e quando lhe disse que era português de passagem em Belgrado e lhe referi ser natural da Covilhã, fiquei surpreso ao saber que ele também era, embora duma freguesia rural do concelho e ainda há dois dias tinha lá estado a inaugurar uma Casa de Cultura numa aldeia. Convidou-me a ouvir a entrevista que o escritor moçambicano Mia Couto ia dar nessa altura, devidamente traduzida para sérvio por um tradutor, perante um auditório muito interessado.
Durante essa entrevista, fixei o olhar na pessoa com quem tinha falado, e de repente reparei que a cara não me era de todo estranha, e ainda mais rapidamente me lembrei do nome da pessoa, confirmado por um rapaz português que ali estava junto a mim: tratava-se do Prof. Arnaldo Saraiva, ensaísta, escritor e jornalista, de quem eu tinha lido tantas crónicas no Jornal do Fundão, onde continua a escrever.
No final da entrevista de Mia Couto, fui cumprimentar pessoalmente o escritor e fui falar novamente com o Prof. Saraiva para lhe dizer que afinal sabia quem ele era e que já tinha lido muitas crónicas dele. Aproveitou para me dizer que tinham chegado entretanto a Alice Vieira e a Lídia Jorge, ambas muito simpáticas, mas foi com Lídia Jorge que falei mais, pois, num outro acaso interessante, tinha lido o seu magnífico “Dia dos Prodígios” precisamente em Belgrado, na última vez que ali tinha estado; apresentei-lhe o Déjan e acedeu a ficar comigo numa foto.

Mais tarde, passei outra vez no local e estava a ser entrevistado o Rui Zink, saudavelmente louco como sempre e a pôr a assistência a rir a cada passo.
Enfim, um excelente fim de tarde.
Mas, a surpresa e as coincidências não acabam aqui, pois dois dias mais tarde, estava a almoçar com o Déjan num popular e central restaurante, ocupando dois lugares de uma mesa de quatro; entretanto chega uma senhora, bastante distinta, dos seus quarenta anos que pede licença para ocupar um dos espaços vagos da mesa, pois não havia mais mesas vagas. Claro que sim, e eu a falar com o Déjan normalmente e a senhora a consultar uns dossiers, enquanto esperava pelo almoço. Como este estava algo demorado, ela disse para o Déjan que estava apressada, pois tinha que ir dali para a Feira do Livro. O Déjan disse-lhe que havíamos aí estado há dois dias, pois eu era português e tinha mostrado interesse em ir lá pelos motivos já citados.
Qual o meu espanto, quando a senhora, num português quase correcto me perguntou se eu tinha gostado. Claro que começámos a falar, ora em português, ora em inglês, para o Déjan entender, e fiquei a saber que a senhora vive desde há anos em Faro, é tradutora de quase todos os livros de escritores portugueses editados em sérvio e isso porque depois de se ter licenciado em Letras na Universidade de Belgrado, tirou o mestrado, escolhendo como tema a poesia portuguesa!!!
E pronto, o almoço foi um espanto, falámos de Eugénio de Andrade, da Sophia, de Florbela, do Al Berto, do Bernardo Santareno, eu sei lá mais de quê; a senhora já queria que eu fosse com ela para a Feira do Livro, onde iria ser a tradutora daí a pouco da entrevista, precisamente, do Prof. Arnaldo Saraiva.
Que coisas belas acontecem por vezes…

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Mãe



Quando Eu For Pequeno

Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.

Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.

Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.

Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.

José Jorge Letria

Para a minha Mãe que hoje cumpre o seu 89º.aniversário, cada vez mais linda e maravilhosa!

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Re(li)gata


Depois de ver o Miguel "ressuscitar" David Mourão Ferreira, relembrei um dos seus poemas de que mais gostei, um hino à sensualidade feminina.

"Quando em lugar de feltro é de barro de Outubro
o calor interior das coxas habitadas
Quando a língua é um barco avançando no escuro
de um canal de Corinto entre pardas escarpas
Quando o cheiro do Mar se desdobra em veludo
Quando rompe na boca o mistério das algas
Quando em baixo o teu pé a triturar-me o surdo
Perímetro do sexo encontra a madrugada
Quando mais se aproxima a náutica do culto
Quando mais o altar se mostra navegável
Quando mais eu descubro e restauro e misturo
Na crista litoral de súbito ampliada
o ritual do grito o ritual do cuspo
e vês que ninguém mais merece esta homenagem
é que enfim te possuo é que enfim te reduzo
a uma luva uma esponja uma deusa uma nave"

David Mourão-Ferreira

domingo, 1 de maio de 2011

Mãe

Palavras para a Minha Mãe


mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe, amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"


Este post vai ser enviada à "Fábrica de Letras", para o tema do mês de Maio, sobre a Mãe.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Passado e presente 18 - Epigrama

Queixou-se uma noviça ao pai honrado

que da ordem um tafulão

Lhe tinha quase à força escarapelado

O virgíneo botão:

"Gritaste ao menos contra o agressor,

Misérrima tolinha?-

(Exclama o ginja, já todo em furor).

"Não, meu pai, não convinha

(Lhe torna a triste) que era pior mal;

Sendo alta a noite, tempo mui perigoso

De incomodar o meu provincial,

Que com a abadessa estava no seu gozo."



Filinto Elísio, in "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica"



(publicado originariamente em 28 de Dezembro de 2006)

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Portalegre, Régio ...e o Miguel

Tenho uma irmã minha que resolveu ir casar a Portalegre, não porque o marido fosse da região, mas porque era a meio caminho, mais ou menos das terras das respectivas famílias; casou numa capelinha na encosta em frente da cidade.
Tinha um grande Amigo, que a morte ceifou cedo demais, que escolheu Portalegre para viver a sua vida profissional, que sempre ali exerceu, sendo a sua mulher sido professora naquela cidade durante esse tempo.
E conheci, há menos tempo, um tipo que me enviou um dia um mail, acerca de um texto que eu publiquei aqui no blog sobre um homofóbico artigo de um jornaleco da cidade e que chegou às minha mãos. Nesse mail, esse tipo, com um orgulho muito alentejano,  orgulho ferido naturalmente, lamentava não o meu texto, mas o artigo em questão, sentindo-se envergonhado, como portalegrense da verborreia de um seu concidadão. Esse tipo, que vim a descobrir ser um tipo muito porreiro, é o Miguel, o Mike, de quem foi tão fácil tornar-me Amigo.
E, “last but not the least”, Portalegre é a cidade de José Régio, um dos grandes nomes da literatura portuguesa  do século passado.
Visitei recentemente Portalegre, onde não ia desde esse referido casamento, para mostrar um pouco mais de Portugal ao meu Déjan, e aí reencontrei o Miguel, evidentemente, que nos acompanhou num dia muito agradável.
Agora, e a propósito da publicação no blog do Mike do poema máximo de Régio – “O Cântico Negro”, ele falou na existência de um CD com a leitura do próprio poeta dos seus versos; perante o meu interesse, o Miguel enviou-me o referido CD, que agradeço sensibilizado.
Dele retirei uns dados auto biográficos manuscritos pelo  poeta que aqui transcrevo.
E porque como referi na altura, a melhor “leitura” que conheço do poema é do grande e inesquecível João Villaret, aqui a deixo também, com toda a sua força brutal.
Finalmente a interpretação muito boa também de Maria Bethânia, deste poema, neste vídeo que deixa também as palavras, em português e em Inglês.

(Clicar na imagem do texto de José Régio, para aumentar).

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Para o Déjan...


Li um dia destes no sempre interessante blog Jugular” um belo poema da Dra. Isabel Moreira, conhecida jurista e que muito admiro, sobre a Sérvia.

Claro que não fiquei indiferente, pois, embora em situações pessoais diferentes, com certeza, o poema refere-se a alguém que a autora conheceu na Sérvia e também eu conheço muito bem alguém da Sérvia, e que me transmitiu exactamente os mesmos sentimentos que o poema refere acerca da posição dos sérvios durante a guerra dos Balcãs.

Aqui deixo a transcrição do belo poema e também do comentário que lá deixei.

“E depois há uma música
Que é sempre a mesma
Que são muitas outras
Que é sempre a mesma
Que eras sempre tu
E depois disseste-me, com a voz nas pálpebras:
Eu não tenho esses séculos de fronteiras
Eu não tenho a paz de saber das minhas memórias
Eu não sou eu até que me não doa a casa magoada do meu tio
E a grávida morta porque morta antes a mulher do assassino
E por isso dizias-me, sem uma lágrima na voz:
Isto é só isto é a dor da identidade; de que falas, Isabel?

E depois agarravas uma viola e era uma outra voz
Que era sempre a mesma
Que eram muitas outras
Que era muito tua
E o som da tua voz inutilizava o significado das palavras
Que não entendo
E que me dizia tudo
Um tiro de raízes ciganas, pelo meio de todas muçulmanas, croatas, albanesas
E as tuas, isso que projectava a pergunta: de que falas, Isabel?
Os olhos cerrados de um sérvio a recuar aos sons
Que eram tantos
Que eram muitos outros
Que terão sido sempre aqueles
Cantados antes que gritados
Ou chorados
Ou sangrados
De que falas, Dragan?
E tu a dizeres: eu preciso de tempo
E que fosse a partir de um sítio com o nome de lugar novo
E assim a dizeres-me, de viola na mão, que precisas de viver
Com a paz muito sofrida da palavra eu.”

O meu comentário:

Dá-se o caso que também na minha vida há um "Dragan" e que através dele, fiquei a conhecer não só melhor a nação sérvia, mas também muito do que desconhecia que se passou na terrível guerra dos Balcãs e que aqui chegava, tantas vezes distorcido pelas agências noticiosas reconhecidamente anti Servia.

Houve nomes de que os sérvios se envergonham, com Milosevic à frente; mas houve também nomes que deviam envergonhar croatas e bósnios.

Mas é sempre conveniente arranjar bodes expiatórios.


E para terminar, uma música bem representativa daquele país.

sábado, 19 de junho de 2010

"Dois dias para esquecer"

Aos 42 anos, Antoine é um publicitário de sucesso, casado com Cécile, de quem tem dois filhos, vive numa bela casa e tem tudo para ser feliz.
Mas, num fim-de-semana como outro qualquer, Antoine sente que nada faz sentido e inicia um processo de autodestruição, arrasando com tudo o que tinha construído até aí: desde a sua vida profissional até cada uma das suas relações afectivas. Para surpresa de todos, durante um jantar na sua casa de campo, mostra-se rude e intransigente, insultando cada um dos presentes. Acaba por expulsá-los e, depois de uma terrível e definitiva conversa com a mulher, abandona a sua casa e tudo o que ela significa.
Em apenas dois dias, Antoine, um homem comum, destrói todas as bases da sua vida. Será esta apenas uma crise de meia-idade?

Este é o tema de um belíssimo filme de Jean Becker,” Dois dias para esquecer”, muito bem interpretado por um excelente Albert Dupontel e que de algum modo estabelece pontos de contacto com o filme de François Ozon “Le Temps qui reste”.

Faz-nos pensar e de que maneira, na precarieridade da vida e também nas difíceis opções que por vezes se verificam num relacionamento baseado no amor.

No final, comovente, ouvimos esta belíssima canção na voz magnífica de Serge Reggiani, precisamente com o mesmo nome do filme de Ozon: “le Temps qui reste”.

Quanto tempo ...
Por quanto tempo mais
Anos, dias, horas, como?
Quando penso nisso, o meu coração bate tão forte ...
O meu país é a vida.
Quanto tempo ...
Quantos

Eu o amo tanto o tempo que resta ...
Quero rir, correr, falar, chorar,
E ver, e acreditar
E beber, dançar,
Gritar, comer, nadar, saltar, desobedecer
Eu não terminei, eu não terminei
Voar, cantar, ir, deixar
O sofrimento, o amor
Eu amo tanto o tempo que resta

Eu não sei onde eu nasci, ou quando
Eu sei que não há muito tempo ...
E que o meu país é a vida
Também sei que meu pai dizia:
O tempo é como o pão ...
Guarda-o para amanhã ...

Eu ainda tenho pão
Eu ainda tenho tempo, mas quanto?
Eu quero jogar ainda ...
Eu quero rir montanhas de riso
Eu quero chorar inundações de lágrimas,
Eu quero beber barcos carregados de vinho
De Bordeaux e da Itália
E chorar, dançar, voar, nadar em todos os oceanos
Eu não terminei, eu não terminei
Eu quero cantar
Eu quero falar até ao fim da minha voz ...
Eu amo tanto o tempo que resta ...

Quanto tempo ...
Por quanto tempo mais?
Anos, dias, horas, quantos?
Quero histórias, viagens ...
Eu tenho tanta gente para ver, tantas fotos ..
Crianças, mulheres, homens grandes
Pequenos homens, engraçados, tristes,
Alguns muito inteligentes e outros idiotas,
É engraçado, os idiotas, isso acalma,
É como a folha no meio das rosas ...

Quanto tempo ...
Por quanto tempo mais?
Anos, dias, horas, quantos?
Eu não ligo meu amor ...
Quando a música parar, eu vou dançar ainda ...
Quando os aviões não voarem mais, eu vou voar sozinho ...
Quando o tempo parar ..
Eu ainda te amarei
Eu não sei onde, não sei como ...
Mas ainda te amarei ...
Concordas?

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Na despedida, meu amor

Na despedida, meu amor, uma Ode de José Régio; tu não partes. Apenas vais "voar" por uns tempos...


"Nuvens tocadas pelos ventos, ide!

Lá para além de vós, o céu não passa.

Contra as rochas erguidas e paradas,

Desfazei-vos na vossa eterna lide,

Ondas!, flocos de espumas encrespadas…


Que a praia, não há onda que a desfaça.


Desfolhai-vos nas asas do tufão,

Rosas inda em botão esta manhã,

Folhas aos velhos troncos arrancadas!

Cinzas levais, só cinza!, em vossa mão,

Tempestades futuras e passadas!


Sobre a semente, a vossa fúria é vã.


Decorrei, dias meus já sem sentido

Senão o de ficar, que não é vosso

Dissolvei-vos no ar, mãos revoltadas!

Gestos, formas, visões, sons, pó erguido,

Voltai ao pó das tumbas ignoradas!...


Que não se apaga a luz de além do poço.


Sou, como as nuvens sou que nada são,

E as ondas frágeis como vãs quimeras,

E as pétalas e as folhas desfolhadas,

E as formas fogos-fátuos da ilusão…

Correi , lágrimas fúteis enganadas!


Mas tu canta, minh’alma! Enquanto esperas."

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Aiiiiii.....o uso das palavras

Nem sempre podemos expressar num português corrente, aquilo que nos apetece dizer, ou porque estamos na presença de pessoas que respeitamos muito, ou por estarmos em locais mais reservados.

Sendo assim, aqui estão alguns exemplos de como devemos dizer o mesmo com palavras nada ofensivas e que até podem provocar uma admiração pela forma elegante como as usamos:

"Deglutir o batráquio" (Engolir o sapo)

"Colocar o prolongamento caudal no meio dos membros inferiores" (Meter o rabo entre as pernas)

"Sequer considerar a possibilidade de fêmea bovina expirar forte contracções laringo-bucais" (Nem que a vaca tussa)

"Retirar o filhote de equino da perturbação pluviométrica" (Tirar o cavalinho da chuva)


a melhor de todas......aprendam

"Sugiro veementemente a Vossa Excelência que procure receber contribuições inusitadas na cavidade rectal"

(Vá levar no cú)

E porque de palavras falamos que tal deliciar-nos com o inesquecível Mário Viegas numa das suas mais célebres declamações…

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ni - Ni (18/7/1944 - 12/2/2009)

Se todo o ser ao vento abandonamos

E sem medo nem dó nos destruímos.

Se morremos em tudo o que sentimos

E podemos cantar, é porque estamos

Nus, em sangue, embalando a própria dor

Em frente às madrugada do amor.

Quando a manhã brilhar refloriremos

E a alma beberá esse esplendor

Prometido nas formas que perdemos.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)


Uma imensa saudade...

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

"Memória Consentida"


Agora que os membros estão rígidos

e o sangue se faz pedra nas veias.

Agora que o encéfalo se esboroa

e destaca das secas meninges

esverdeadas.

Agora que a carne balofa

visita a dureza

do basalto

e os intestinos dilatam

ao inchaço azul de não expelidos

excrementos.

Agora que a necessária morte exacta

o invadiu

desde o cerne das unhas


pesa mais


em nossos ombros dobrados,

já cadáver.


Pesa

em nós sua elefantíase

de cadáver gordo

tornado inúteis pirâmedes

de Gizeh,

enquanto

ácidos ventos do deserto

anunciam

a chegada dos bichos da terra.



(Notícia 1, in “Memória Consentida”, de Rui Knopfli)



Depois de um ano de 2009 terrível, com o desaparecimento de pessoas, familiares e amigas, que me trouxeram dor e tristeza, esperaria com alguma legitimidade um ano mais calmo, nesses aspectos. Mas a realidade tem sido diferente, desde a calamidade que varreu quase um país do mapa, até à inesperada notícia desta manhã, crua e dura: o Alfredo, meu companheiro de infância na Covilhã, meu colega de estudos e divertimento na Lisboa universitária, meu Amigo de sempre, faleceu esta madrugada de súbita paragem cardíaca: tinha um ano mais que eu...

Pergunto a mim próprio se entrei já no ciclo dos anos consecutivamente maus e se não serei eu a partir um dia destes...

Para ti, Amigo Alfredo, onde quer que estejas um abraço já saudoso.

domingo, 1 de novembro de 2009

87 anos


Vou hoje para a Covilhã, a fim de passar o aniversário da minha Mãe, amanhã dia 2 de Novembro, com ela.

O ano passado estava em Milão e portanto não lhe pude fazer companhia; senti-me desconfortável e pesaroso, pois na sua idade e embora o seu estado de saúde esteja normal, nunca se sabe quando será o último.

Prometi a mim mesmo, que a partir deste ano, sempre passaria com ela este dia e assim farei: faz 87 anos e teve um ano muito difícil, pois perdeu uma filha o que a levou além da dor natural de uma mãe que perde um filho, à revolta de não ter sido ela a partir, pois seria a lei natural das coisas…

Será uma estadia curta, mas que me dá muito gosto.

A ela, no dia do seu aniversário, quero deixar a poesia eterna de Eugénio de Andrade:

“No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.”

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Na casa de Ary

José Carlos Ary dos Santos nasceu em Lisboa a 7 de Dezembro de 1937 e morre também em Lisboa a 18 de Janeiro de 1984 e celebrizou-se como poeta.

Oriundo de uma família da alta burguesia, José Carlos Ary dos Santos, conhecido no meio social e literário por Ary dos Santos, vê publicados aos 14 anos, através de familiares, alguns dos seus poemas, considerados maus pelo autor.
No entanto, Ary dos Santos revelaria verdadeiramente as suas qualidades poéticas em 1954, com dezasseis anos de idade.
É nessa altura que vê os seus poemas serem seleccionados para a Antologia do Prémio Almeida Garrett.

Nessa altura Ary dos Santos abandona a casa da família, exercendo as mais variadas actividades para se sustentar, tais como venda de máquinas para pastilhas até à publicidade.
Paralelamente, o poeta não cessa jamais de escrever e em 1963 dar-se-ia a sua estreia efectiva com a publicação do livro de poemas A Liturgia do Sangue (1963).
Em 1969 inicia-se na actividade política ao filiar-se no PCP, participando de forma activa nas sessões de poesia do então intitulado "canto livre perseguido".

Ary dos Santos morreu a 18 de Janeiro de 1984, na sua casa, na rua da Saudade, em Lisboa, quando preparava um livro autobiográfico intitulado «Estrada da Luz-Rua da Saudade» e a edição de dois livros de versos, “Trinta e Cinco Sonetos” e as “Palavras das Cantigas".


Foi nesta casa da Rua da Saudade que estive numa estranha noite, começada num bar gay da Calçada da Patriarcal, que parece ainda existir, mas com outro nome, e que na altura se chamava “Clássico…ma non troppo”; aí encontrei um amigo, que tinha aparecido num grupo animado, para beber um copo, e no qual se incluía Ary dos Santos, poeta que sempre admirei. Foi de uma forma natural que me vi incluído no grupo que rumou para o Castelo, para a casa do poeta. Era uma casa magnífica, com uma enorme sala, cheia de brocados, com fotos de grandes senhoras da vida cultural portuguesa (Amélia, Amália, Eunice, Natália…) e numa sala contígua Ivone Silva ensaiava um trecho de uma nova revista a apresentar em breve e da qual Ary era co-autor.

Era para mim, jovem universitário, uma atmosfera inédita e quase irreal; formou-se um círculo com os que tinham chegado, todos sentados no chão, entre almofadas, e um ritual se iniciou, bastante comum na altura, e sem grandes consequências, de um que outro “charro” fosse sendo fumado em comunidade e com conversas interessantes.

Quando chegou a altura que eu achei que devia sair, dirigi-me a Ary para lhe agradecer a agradável noite, mas ouvi, num tom imperativo, algo inesperado: “tu não vais embora, ficas a dormir aqui em casa”; claro que não gostei, sempre fiquei a dormir onde bem quis e não onde me impusessem, pelo que disse que tal não aconteceria e dirigi-me para a porta; foi então que a mão sapuda de Ary me esbofeteou, irado pela “desfeita” de um engate mal sucedido. Doeu bastante, não pela dor física, mas sim porque nesse momento caiu um mito…

Saí!!!!

A admiração pela obra poética de Ary, claro que não ficou beliscada, mas como ser humano, apenas um enorme desprezo a partir daí senti por ele.


E baseado neste “incidente” elegi para ilustrar a sua poesia, não um dos seus mais conhecidos poemas, mas este

“Soneto Presente”

“Não me digam mais nada senão morro

aqui neste lugar dentro de mim

a terra de onde venho é onde moro

o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo.

E eu não posso dizer. Eu estou de pé.

De pé como um poeta ou um cavalo

de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo

a não ser os que eu amo ou que eu entendo

os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima

Porque é de baixo que me vem acima

A força de um lugar que for o meu.”


©Todos os direitos reservados
A utlilização dos textos deste blogue, qualquer que seja o seu fim, em parte ou no seu todo, requer prévio consentimento do seu autor.