Na segunda feira fui ver nos Jardins de concreto, em Sampa, o teimoso girassol quebrando a rotina daquela Alameda, fazendo sorrir o paulistano.
Livros depois, em 95, num domingo quase carnaval, olha o girassol do Caio outra vez! Agora plantado por ele que, ao se saber com Aids (Sida), mergulhou fundo em si. Voltou, também jardineiro dedicado, à casa dos pais, em Porto Alegre, Bairro Menino Deus.
Nessa crónica ele contava sua experiência com a vida curta, porém plena, dos girassóis. Saboreando entrelinhas, fui tocada ao sentir que bem ali, na corola da crónica do Caio, havia uma história pronta para acariciar a alma das crianças de todos nós.
Num impulso montei um livro doméstico, ilustrado pela irmã Tetê De Marcchi e pela bela letra do companheiro Bernardo Klopfer. E mandei pro Bairro Menino Deus. Porto Alegre.
Dias depois nosso grande Caio se foi.
No meio da tristeza, o poeta Gil França Veloso – grande amigo e depositário da obra do autor – me ligou: “…vamos publicar…”
E a Global (editora), sabiamente, cuidou destes Girassóis do Caio Fernando Abreu.
(Cláudia Pacce)
E assim surgiu, agora com ilustrações de Paulo Portella
Filho, Girassóis, que é um trecho da crónica “A morte dos girassóis”, publicada
em 7/2/96 no jornal “O Estado de S.Paulo” e no livro de crónicas “Pequenas epifanias”.
E pela primeira vez publico aqui no meu blog, na integra, um
livro (necessariamente muito curto), mas belíssimo.
Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar, enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia, pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir. Mas leva tempo, ele também se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei quase um mês no verão. Quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados.
Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: - Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente? O homem ficou me olhando, pálido. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer. Porque tem outra coisa: girassol, quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjectivo é esse, do que um girassol aberto.
Alguns amarrei com cordões em estacas, mashavia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de- são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, crau! Veio uma chuva medonha e deitou-o por terra.
Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a idéia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo. Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro. Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas.
Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra. Depois, não sei ao certo, talvez voltassem à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaléia. Vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo, no escuro, em segredo.”
Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: - Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente? O homem ficou me olhando, pálido. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer. Porque tem outra coisa: girassol, quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjectivo é esse, do que um girassol aberto.
Alguns amarrei com cordões em estacas, mashavia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de- são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, crau! Veio uma chuva medonha e deitou-o por terra.
Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a idéia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo. Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro. Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas.
Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra. Depois, não sei ao certo, talvez voltassem à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaléia. Vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo, no escuro, em segredo.”