Tudo começou com um desafio do Deutsches Filmmuseum depois da morte de Stanley Kubrick: construir uma exposição dedicada ao realizador. Christiane, a viúva, aceitou a ideia e iniciou com o museu um trabalho que duraria um ano: escolher os objectos dos arquivos do cineasta que colocariam os espectadores dentro dos seus filmes. O resultado esteve exposto até ao final do ano passado no Palazzo delle Esposizione, em Roma.
Stanley Kubrick não é só um dos maiores realizadores do século XX como um dos seus nomes mais misteriosos. Alguém a quem associamos, para além de um génio e um estilo pessoal, uma aura única. Perfeccionista, vanguardista, absolutista; muitas são as etiquetas que se lhe colam. Sempre reservado e pouco dado a entrevistas, pouco ficou para além do que se conta dele e do que, afinal, mais importa – os filmes.
Nessa exposição se reunia toda a carreira de Kubrick: as fotografias para a revista “Look”, os primeiros documentários (“Day of the Fight”, 1951; “Flying Padre”, 1952; “The Seafarers”, 1953), assim como todas as suas longas-metragens (“Fear and Desire”, 1953;”Killer’s Kiss”,1955; “Um Roubo no Hipódromo”, 1956; “Horizontes de Glória”, 1957; “Spartacus”, 1960; “Lolita”, 1962; “Dr. Estranho Amor”,1964; “2001:Odisseia no Espaço”,1968; “Laranja Mecânica”, 1971; “Barry Lyndon”, 1975; “Shinning”, 1980; “Nascido para matar”,1987; “De Olhos bem Fechados”, 1999).
Cada filme teve uma preparação mais meticulosa que o anterior – era esta uma das marcas do realizador. Isso só lhe permitiu fazer treze filmes, mas como disse um dia Scorsese, são suficientes para dez vidas. Cada filme era apresentado como se fosse um objecto nunca antes visto: argumentos originais e corrigidos, esquemas de trabalho, maquetes de cenários, notas pessoais, roupas e “storyboards”, fotografias de rodagem e fotos promocionais, correspondência entre colaboradores, entrevistas a intervenientes, “posters” originais e recortes de imprensa. Todos eles são objectos preciosos e entre eles destacam-se o argumento original de Vladimir Nabokov para “Lolita” (e a correspondência com Kubrick); a carta que informa a proibição de “Dr Estranho Amor” em Portugal; as figuras pop-arte e bonecas do bar “Korova Milkbar” e o fato de Alex (“Laranja Mecânica”); os machados e a máquina de escrever de “Shinning”; o capacete e metralhadora de “Nascido para Matar”; as máscaras em “De Olhos bem Fechados” ou o papel com a palavra passe para a cena de orgia do filme.
A “2001…” é dada atenção especial, com explicações técnicas exaustivas sobre a rodagem, chegando a ser recriada a técnica de transparência utilizada no filme ( colocando virtualmente os visitantes da exposição num dos seus cenários), para além das informações explícitas sobre os outros efeitos especiais ( a viagem ultra-sensorial para Júpiter) ou a presença do próprio HAL. Uma maquete da nave pode ser manipulada por quem o desejar, estando a sua construção documentada em fotografias e vídeo. Mostra-se a influência da época no tempo futuro de “2001”, com uma amostra de objectos feitos por marcas reais (canetas Parker, computadores IBM, roupas vogue), até vemos o manual de instrução da casa de banho de gravidade zero.
Cada documento é a prova rigorosa do trabalho autodidacta e multidisciplinar de Kubrick, quer pelas notas de intenções como pelas fotografias de rodagem, evidenciando-se sempre um realizador atencioso, divertido e integrado em todas as tarefas da equipa, dialogando e rindo com os actores ou jogando xadres durante as pausas.
Kubrick está em todo o lado – observa os intervenientes, filma as suas cenas, segura os reflectores, pinta acessórios, posiciona individualmente os figurantes. Assim foi desde muito cedo – no seu segundo filme “Killer’s Kiss”, 1955), foi realizador, produtor, autor, operador, editor de imagem e de som.
O interesse de Kubrick ultrapassava a simples coordenação de uma equipa. Cada filme era uma missão de pesquisa, um estudo histórico e uma busca de equipamentos perfeitos. Uma sala inteira da exposição é dedicada às suas lentes, algumas vindas da fotografia e adaptadas ao cinema, outras encomendadas para cenas específicas ( como a impressionante lente Zeiss da NASA para a luz das velas em “Barry Lyndon”). Kubrick não só as escolhia pessoalmente como as coleccionava – há dezenas e dezenas na exposição, documentando no estudo extensivo da luminosidade pelo realizador. As câmaras, da portátil Arriflex (a sua preferida) à imponente Mitchell, também são presença constante.
Noutra das salas, um documentário mostra a relação do realizador com a música, associando géneros musicais a temas: marchas para um exagero dramático, electrónica para estimular a percepção, temas litúrgicos para contemplar o incógnito, cordas para a solidão e melancolia, canções populares para mensagens subliminares ou música experimental na entrada de outros mundos. Era um Kubrick maestro que recusava as encomendas e controlava todos os movimentos, indo buscar sentimentos a obras clássicas (na dança dos astros de “2001”, nas notas pontiagudas de “Olhos Bem Fechados”) ou recriando-as como personagens (na reinterpretação robótica de “Laranja Mecânica”).
Os seus projectos não concretizados estão também presentes na exposição: “Aryan Papers”, filme baseado no Holocausto (abandonado quando Spielberg anunciou “ A Lista de Schindler”); os trabalhos preparatórios para “A.I.”, projecto que esperava um avanço nos efeitos especiais (mais tarde finalizado por Spielberg); e sobretudo um filme sobre Napoleão, a grande paixão da vida de Kubrick. O fascínio do realizador pelo imperador francês é explícito – vemos as dezenas de livros de Kubrick sobre a personagem histórica, o argumento escrito e acabado em 1969, o enorme plano de trabalho (organizado ao segundo) que divide a vida de Napoleão em 221 cenas, ou 236 minutos e 41 segundos de filme, e o impressionante armário-ficheiro que reúne todos os meses da sua vida (com cores diferentes para cada personagem). Nenhum estúdio aceitaria projecto tão arriscado.
O que já se sabia de Kubrick confirma-se nesta exposição: um artista controlador e experimental, obcecado com o estudo da natureza humana e com a organização detalhada do seu trabalho. Mas conhecemos também as suas dúvidas, o receio da dispersão, a dificuldade em gerir a pressão e a censura ao seu trabalho. Ao ler as cartas de protesto aos seus filmes (desde o censurado “Horizontes de Glória” até ao seu último filme) e a violência das interpretações que as suas obras geraram (Laranja Mecânica” esteve proibido nos cinemas britânicos), vemos um artista também incompreendido e desolado, preso a uma imagem fria e obsessiva. Afinal, a sua relação com a imagem era acima de tudo apaixonada, como um caminho de desafios por quebrar.
E agora vamos sonhar…sonhar que um dia esta exposição nos visite. Afinal é o sonho que comanda a vida…
Para terminar, informam-se os interessados, que se realiza, de 29 do corrente até 16 de Junho, por iniciativa da Ar.Co
http://www.arco.pt/ um curso teórico “Stanley Kubrick: uma mundivisão”, em que é feita a análise integral da obra do autor, e no início das sessões, cada filme será comentado e no final alargado a debate com apoio de textos sobre o realizador. Este curso será conduzido pelo realizador e critico de cinema Lauro António.