Faleceu há dias José Manuel Osório. Foi um lutador, numa luta desigual contra um adversário poderoso - a Morte!
Durou 27 anos esse combate e só com uma grande força ele aguentou tanto tempo essa luta. Teve com certeza, fases de desalento, mas quando aparecia na televisão, era sempre para deixar a sua mensagem de esperança e de fé.
Foi um grande fadista e um excelente comunicador. Que descanse em paz.
Deixo aqui um artigo de opinião, em sua memória, do seu filho, o jornalista Luís Osório, que é um linda expressão de amor filial.
"
Morreu tranquilo e apaziguado, fez ontem uma semana. Na última semana viu todas as pessoas que verdadeiramente lhe interessava ver – fez-nos rir, mostrou-se feliz pelo prémio de investigação que deveria receber em Novembro, mas ao contrário de todas as outras vezes não se comprometeu com mais uma redenção.
Há vinte e sete anos, também num dia de calor, fiquei destroçado. Informou-me que talvez fosse a nossa última conversa porque lhe fora diagnosticada uma doença que se mostrava fatal e infalível no seu rasto de destruição. Nesse dia, nesses primeiros dias, deixou-se ficar por casa, afundou-se na cama do quarto de sempre, contou as horas que faltavam para iniciar a viagem para o fim. Tudo nele parecia derrota, não pelo medo da morte mas pela irremediável sensação de que não se cumprira, pela terrível ideia que desperdiçara a sua vida.
Deu a volta às gavetas. Queimou as fotografias que tinha, as suas memórias, os sinais do que julgava ser o seu falhanço. Ficou assim algumas semanas e, num dia igual aos outros, sem que conseguisse explicar porquê, saiu do quarto e jurou aos mais próximos que decidira vencer a doença. Foi aí que renasceu. Foi nesse preciso momento que começou a viagem que o faria chegar, contra todas as expectativas, a um sítio onde apenas estão os que partem de consciência tranquila.
Esta é então a história de um homem que provou não existirem impossíveis. O homem que decidiu tirar num só dia todos os dentes porque o médico lhe disse que eram potenciais focos de infecção. O que fez questão de assumir a doença publicamente para combater a discriminação. O que resistiu à toxoplasmose, tuberculose, linfoma, meningite, septicemia, hepatite. O que esteve três vezes em coma e sem muitas esperanças de sobrevivência. O que durante tantos e tantos anos tomou mais de 50 comprimidos todos os dias. O que fez todas as quimioterapias possíveis. O que aproveitou os momentos disponíveis para investigar sobre o fado, para escrever várias colecções de referência, para ganhar prémios, dirigir o trabalho de associações de combate à discriminação, coordenar acções de formação e ajudar dezenas de doentes a acreditar que na vida cada um deve lutar até ao fim e não desistir.
Esta é a história do meu pai. De quem estive afastado uma vida e que tantas vezes não compreendi, o meu pai – militante comunista, exilado em Paris, co-fundador do grupo de Teatro A Barraca e filho de Alice, a mulher da sua vida. José Manuel Osório, chamava-se. Fez ontem uma semana que partiu. Tranquilo e apaziguado.
Nos últimos anos coordenou duas monumentais colecções de fado. Em 2005, organizou a convite de João Pinto de Sousa o projecto Todos os Fados, publicado pela revista Visão. Esteve na primeira linha entre os que fundaram o Museu do Fado, coordenou as Festas da Cidade de Lisboa e tudo isso depois de estar doente – quando quase todos pensavam em surdina que não acabaria o que tinha em mãos, ele pensava na próxima ideia a concretizar.
Essa é a sua marca, o motivo pelo qual me orgulho. À sombra da desconfiança de todos os olhares e com o terrível peso de uma doença que o destruía por dentro, soube e teve a coragem de construir uma obra e o sentido que lhe faltava.
Ao contrário das outras vezes, tantas e tantas que a sua morte foi antecipada, sabia que agora o tempo se estreitara. A última vez que estive com ele a sós não me falou de nenhum projecto que quisesse terminar. Limitou-se a sorrir. Estava pronto.
O primeiro texto que escrevi foi uma cunha sua. Joaquim Benite, ao tempo chefe de redacção do jornal Diário recebeu-me a seu pedido – «o teu pai está convencido que tens talento, diz-me coisas». Escrevi dois textos: sobre o movimento skinhead e uma entrevista ao Rodrigo Leão.
A primeira vez que fui sócio do Benfica foi ele que me inscreveu. Entrei pela sua mão na sede da Rua Jardim do Regedor, onde homens jogavam bilhar e comentavam jogos da véspera. Que felicidade a minha.
O primeiro filme interdito a maiores de 18 anos vi com ele. Nessa noite a RTP anunciara o Pato com Laranja, um erótico italiano e a avó Alice pediu-lhe para me tirar de casa. Para compensar levou-me ao Roma onde estava em exibição Pink Floyd The Wall. Não me parece que, em algum momento, lhe tenha passado pela cabeça que talvez aquelas imagens fossem demasiado violentas para uma criança que ainda não completara os dez anos. E não fizeram, pai.
A primeira vez que me deitei de madrugada foi depois de uma borga com ele. O primeiro concerto a que assisti foi com ele. Apresentou-me a Cunhal, Manuel Alegre, José Mário Branco, Ferré, Chico Buarque. O ursinho com que adormecia na infância era o mesmo que o adormecia…
No 8.º ano, por força da puberdade, tive seis negativas no segundo período. Convidou-me para jantar e, como se nada fosse, perguntou-me pelas notas. Informei-o de que tudo estava bem, como podia estar mal? Impassível, sem elevar a voz, disse-me que talvez existisse um equívoco: «Esta tarde estive no liceu e pareceu-me ter visto seis negativas. Não quero saber mais nada nem falar mais disto. Mas se for verdade quero que resolvas isso. Não tenho que me preocupar, pois não?».
Numa longa conversa, publicada num livro, confessou-me que gostaria de ouvir, antes de morrer, o Com que Voz de Amália Rodrigues. Se tivesse tempo escutaria ainda Maria Callas a interpretar ‘Casta Diva’, uma ária da Norma, de Vincenzo Bellini. Jantaria um bife no Pap’Açorda e arrumaria os livros no quarto para separar os que não podiam deixar de ficar para mim.
Oiço então Amália. E termino com as suas palavras: «Os meus dois netos são um caso à parte. É natural que olhe para eles de uma forma diferente, é até natural que olhe para eles como nunca olhei para ti. Mas normalmente olho para ti quando estás distraído. Assim que percebes, desvio o olhar. Como os dois miúdos não me perguntam ‘porque estás a olhar para mim?’, olho sem qualquer preocupação. Se um dia me perguntarem, também saberei desviar o olhar».
* A última palavra gostaria que ficasse para Ana Campos dos Reis, directora de serviços de apoio ao VIH da Santa Casa da Misericórdia. Ela foi o seu anjo, ela é um anjo. E para Tozé Brito e Manuel Faria, eles sabem porquê.
terça-feira, 23 de agosto de 2011
José Manuel Osório
Publicada por
João Roque
à(s)
00:26
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Claro está que só podiam ser do Benfica. Lembro-me de uma série que deu em que O Luis Osório falava com o seu pai e eram sempre conversas interessantes. Lembro-me também do Portugalmente, do Zapping e de outros programas que o Luis Osório desenvolveu na RTP2...
ResponderEliminarChama-me ignorante, pois se calhar mereço-o...contudo não conhecia o nome deste senhor...conhecia-lhe a cara, conhecia-lhe os olhos, os gestos suaves, e a luta...conhecia-lhe especialmente a luta. Não conheço o trabalho...mas conheço-lhe as palavras e o sorriso.
ResponderEliminarConheço-o de infância já, especialmente porque foi ele que me fez conhecer que o HIV não era sinónimo de morte...não lhe conheço os prémios, mas reconheço-lhe a esperança!
Johnny
ResponderEliminare eu recordo o Homem, o lutador e que pelo que aqui se lê também soube ser Pai.
Abraço amigo.
Ima
ResponderEliminaracho que para muita gente, ficará mais a imagem de que falas, do que o nome.
Foi uma imagem que se foi transmitindo ao longo dos anos...
Abraço amigo.
Nossa! 27 anos lutando contra uma doença? Não consigo nem imaginar o que é tudo isso... tem casos, em que a morte é o melhor que pode nos acontecer ;(
ResponderEliminarQue descanse em paz!
Beijinho
Pat
ResponderEliminara doença foi o VIH e há 27 anos ainda não era uma doença crónica, como agora já começa a ser; era mesmo mortal...
Beijinho.
Um homem de coragem!
ResponderEliminarEstá sempre por cá.
Apenas o corpo se vai.
Abraço
http://rabiscosincertossaltoemceuaberto.blogspot.com/
Zé
ResponderEliminarsem dúvida; contribuiu e muito para a aceitação de uma vida normal para os doentes infectados por VIH, em Portugal.
Abraço amigo.
ainda bem que fizeste este post e que transcreveste o texto do Luís Osório. quando o José Manuel Osório faleceu, senti que lhe ficava a dever uma despedida, por isso aproveito esta tua.
ResponderEliminaradmirava no JMO mais a resistência face à Sida e o facto de a ter assumido sem rebuços de falso pudor (tão mais vulgares entre nós), do que propriamente o seu papel de cultor da história do fado. e tenho ideia de o ter ouvido cantar, mas só na televisão.
mas calhei de ler o livro que pai e filho escreveram (devo ter falado nisso lá no meu canto) e nunca se apagou o assombro e a comoção dessa longa espécie de entrevista, em que duas pessoas tão próximas falam de tudo aquilo que as une e separa, sobretudo das dificuldades que sempre marcaram a sua relação. na verdade, desde essa leitura fiquei a sentir-me assim uma espécie de amigo de ambos, de amigo íntimo.
um abraço
ps: há muito tempo que não conseguia entrar no teu blog aqui no computador do emprego. hoje consegui. ainda bem que foi hoje.
Foi e é um simbolo de coragem extraordinário... Não há como não ficar comovido com este texto. E eu já realizei uma coisa nestas ultimas semanas, o maior medo que alguém tem não deve ser da morte, pois ela chega a todos. Não será talvez de todos morrerem à nossa volta e sermos o que fica...
ResponderEliminarAbraço
Miguel
ResponderEliminarcomo deves ter reparado, no meu breve trecho introdutório, apenas fiz uma pequena referência ao fado, embora sabendo a importância que o fado teve na vida do JMO.
Não li ainda o livro de que falas, mas irei fazê-lo com certeza.
Por falar em livros, estou a iniciar a leitura de "Brooklyn...
Abraço amigo.
TUSB
ResponderEliminarimagino o quanto te terá tocado este texto do Luís Osório, por motivos óbvios.
Deve ser terrível, assumir uma morte anunciada, que pode ser um dia, ou outro, e ter a força para dar força.
Abraço especial.
A valentia dos outros deve ser sempre um exemplo a seguirmos.
ResponderEliminarConfesso não o conhecia, mas pelo seu post posso perceber o quanto ele foi importante como símbolo de luta ,vida..apesar da sua doença.
ResponderEliminarQue descanse em paz e sirva sempre de exemplo aos demais.
Admiro a grandeza desse Homem. Lutar, apesar da doença (pois toda a doença é um peso); apesar da ignorância de muitos quanto à doença; apesar do estúpido e inútil preconceito; lutar apesar de tudo e a favor da vida. Enfim, um Grande Lutador: um SENHOR.
ResponderEliminarKaplan
ResponderEliminarprincipalmente se essa valentia se alicerça em valores difíceis e exigentes.
Abraço amigo.
Glauko
ResponderEliminartornou-se mais conhecido, principalmente pelo seu envolvimento na luta contra a descriminação que envolve os doentes com SIDA e que viram nele um exemplo de como se pode ter uma vida digna e batalhadora, o que nem sempre é fácil.
Abraço amigo.
Rosa
ResponderEliminaras suas múltiplas intervenções, principalmente as televisivas, e durante um processo de doença, por vezes muito difícil, como o filho enumera na sua crónica, não deixa ninguém indiferente.
Beijinho.
Tenho um admiração enorme por esse senhor e foi com tristeza que soube há uns dias da sua morte. Espero realmente que descanse em paz e que esteja neste momento num sitio bem melhor do que este nosso mundo.
ResponderEliminarUm abraço
Sérgio
ResponderEliminarJMO bem fez por merecer a tua, a minha e a admiração de toda agente.
Abraço amigo.
Grande publicação!
ResponderEliminarAbraço.
Uma lição de vida. Vou levar o texto pois posso precisar de o ler mais tarde.
ResponderEliminarPaulo
ResponderEliminaré sem dúvida uma grande publicação.
Abraço amigo.
Draco
ResponderEliminarsim, é verdade uma enorme lição de vida.
Não entendi a tua segunda frase.
Abraço amigo.
Belo texto e dedicatória do filho! Pela foto parece-se que me lembro de o ver na tv mas posso estar a fazer confusão...
ResponderEliminarE música bonita de fundo ehehe
abraço
Ruy
ResponderEliminaré natural que te recordes, pois ele aparecia muitas vezes; nos últimos tempos, não, talvez por já estar muito debilitado.
Abraço amigo.
Lembro-me de o ver bastantes vezes na televisão e ele surgia-me sempre como um homem de bastante coragem. Vítima do HIV (o que é diferente de estar no estágio SIDA), soube viver com o vírus durante anos e anos a fio. Um enorme exemplo de resistência, a par da inevitável sorte que também é bastante necessária. Não nos esqueçamos de que a grande maioria dos doentes de HIV na década de 80 e 90 do século passado morriam.
ResponderEliminarJá agora, my dear, e a título de mera curiosidade, o José Manuel Osório morreu mesmo vítima da SIDA ou teve um outro problema de saúde? É que nas notícias que li sobre a sua morte não consegui obter a informação.
Abraço. ^^
Mark
ResponderEliminarninguém morre de SIDA, como sabes, mas de complicações que advêm da falta de imunidade do organismo de quem é portador do vírus HIV.
Como está escrito no testemunho do filho,ao longo destes 27 anos, JMO teve de tudo, no que respeita a doenças, tendo estado por várias vezes, num estado gravíssimo, mas ia conseguindo resistir, até porque o avanço da medicação nos últimos tempos tem sido grande; mas o enfraquecimento do organismo, os terríveis efeitos secundários de uma medicação complicadíssima acabou por vencê-lo.
Não sei exactamente qual a causa da morte, mas uma qualquer infecção poderá ter sido suficiente.
Fica o seu exemplo de luta, do seu empenho na não descriminação dos portadores de HIV, para ser sempre lembrado.
Abraço amigo.
Obrigado, my dear.
ResponderEliminarSim, claro, eu referia-me a se o José teria morrido de uma chamada "doença oportunista" devido ao facto de ter SIDA ou se teria morrido de uma causa estranha a essa mesma doença. :)
Mas, como bem disseste, provavelmente foi o seu estado débil de anos e anos de coabitação com o vírus que lhe provocou a morte. :(
Abraço. ^^
Mark
ResponderEliminareu não tenho a certeza, mas apenas funciona aqui a lógica.
Abraço amigo.
Conhecia-o, não pessoalmente, e admirava-o, um homem de fibra que transmitia esperança, uma esperança que eu estendia para outras "maleitas" da vida.
ResponderEliminarA homenagem do filho "mexeu" comigo!
Abracinho meu!
Maria Teresa
ResponderEliminaracho que "mexe" com qualquer pessoa com sensibilidade.
Beijinho.
Admirava-o muito, foi sem dúvida uma luta de esperança.
ResponderEliminarGostei bastante desta crónica do filho que não conhecia. Obrigada pela partilha.
Bjinhs
Mz
ResponderEliminarmais que uma luta, foi também uma partilha dessa esperança.
Beijinho.
Só o conhecia de ver na TV, e nessas poucas oportunidades, fiquei com a ideia de estar perante um Homem de coragem, por dar a cara, sobretudo em tempos em que isso era muito, muito difícil Desconhecia que era pai de Luís Osório, um jornalista que muito prezo.
ResponderEliminarQue mais dizer?!
Paz à sua alma?
Lear
ResponderEliminarrealmente ao longo de 27 anos as coisas, relativamente à SIDA, no mundo e também em Portugal, mudaram muito.
E para essa mudança, no nosso país, muito contribuiu JMO.
Também eu, só há cerca de três anos tive conhecimento do grau de parentesco entre JMO e Luís Osório, quando apareceram, uma vez juntos na TV.
Abraço amigo.
Obrigado, Pinguim! Por este texto e pelo de acima (amanhã).
ResponderEliminarObrigado.
João
ResponderEliminarcontinuo a defender de que a partilha é uma das vertentes mais importantes da blogosfera.
Abraço amigo.
Belíssimo testemunho do amor de um filho.
ResponderEliminarEva
ResponderEliminaros laços de sangue são sempre superiores a eventuais divergências de opiniões.
Beijinho.
Um homem fantástico na sua coragem e frontalidade para com a vida e... a morte!
ResponderEliminarE um filho que é um doce! Só há dois, três anos soube que Luís Osório é seu filho!
Amores filiais assim, são profundamente tocantes, enternecedores!
Nos dias que correm...
Boa semana!
Isto é AMOR. Do Puro.
ResponderEliminarFragmentos
ResponderEliminarentão estás como eu no que respeita ao conhecimento tardio do grau de parentesco entre os dois Osórios.
JMO foi o porta-estandarte da esperança para aqueles que se apanharam um dia infectados pelo vírus do HIV.
Beijinho.
Lótus
ResponderEliminarobrigado pela tua visita. É realmente o testemunho de um belo amor filial, este documento: homenageia o pai e enobrece o autor.
Beijito.