Como já referi em crónicas anteriores, o aquartelamento da Ilha de Metarica, que me calhou em sorte, era muito limitado em instalações, tinha uma pequena “pista de aviação”, criada no meio do mato, prèviamente capinado, e que para um “voo nocturno”, foi balizada por centenas de latas de cerveja vazias com pavios acesos, e que era a nossa única possibilidade de contacto pessoal com o exterior, através de um serviço de táxi aéreo que o exército mantinha entre o batalhão, sediado em Marrupa, e as diversas companhias, e que nos visitava duas vezes por semana, trazendo e levando pessoas, trazendo-nos os chamados “frescos” para a alimentação e o ambicionado correio. Havia ainda uma “picada” (caminho...não confundir com estrada), intransitável durante a estação das chuvas, e perigosa, devido à possibilidade de minas e de emboscadas, e que nos ligava à sede do batalhão, distante algumas centenas de quilómetros, pelo que apenas era utilizada ¾ vezes por ano, com as chamadas “colunas”, autênticos comboios de viaturas carregadas de bens duradouros e que pela sua perigosidade, obrigava a uma elaborada preparação, por causa das escoltas militarizadas, e das equipas de detecção de minas anti-carro, que quando deflagravam mandavam o carro ao ar e os seus ocupantes (por isso os carros militares iam super carregados de sacos de areia, para os tornarem menos vulneráveis a um eventual rebentamento).
Neste quartel, que eu comandava, havia cerca de 150 homens, entre militares e “mainatos”(rapazitos que ali viviam e tratavam, a troco de pouco dinheiro, da roupa,de outras coisas de quem os contratava, por exemplo carregavam com material , nas idas ao mato, em operações), e dos quais apenas entre 30 a 40 éramos brancos, quase todos graduados e alguns soldados “especialistas” (transmissões, manutenção, administrativos, etc.) Havia uma secção fluvial, com barcos de borracha e com motor, com capacidade para cerca de 15 homens, pois quase todas as operações era feitas, para lá do Lugenda, o grande rio, que distava do quartel quilómetro e meio; e assim havia que transportar, tanto à ida como na volta, o pessoal para a outra margem.
Quando no final de 1972 assumi o comando da companhia, esta zona do Niassa, estava já bastante pacificada, pelo que apenas algumas operações, a locais mais afastados e portanto mais demoradas, algumas chegando a semana e meia , para meu pesar, eram sempre comandadas não pelos alferes, mas por mim, assumiam alguma perigosidade, na procura de algumas precárias “bases inimigas”; como não havia população alguma em mais de 100 quilómetros em redor, qualquer pessoa avistada era naturalmente considerada suspeita.
A vida decorria pois, dentro de alguma normalidade, embora muito lentamente, apenas aqui e ali, interrompida por algum facto menos comum.
Como era pràticamente impossível sair dali, a não ser de avião, ou numa coluna auto ( a pé, ninguém o faria), por vezes eram mandados para este aquartelamento, soldados, cuja guia de marcha estava bastante manchada por factos menos agradáveis, pois este local era assim como que uma prisão sem grades.
Um belo dia, eis que me aparece um soldado, o Mazive, homem enorme, e dono de um corpo de deus negro e de um rosto bonito, e que vinha destinado à cozinha; como tinhamos apenas dois cozinheiros e não eram pròpriamente muito dotados em culinária, foi muito apreciada a vinda de um novo colaborador. Mas, lendo a sua guia de marcha, vim a saber que o amigo Mazive, tinha no seu “currículo”, algo invulgar, pois era considerado na sua aldeia natal uma espécie de feiticeiro, com alguns poderes e sabedor de algumas «mézinhas», e fazendo uso delas, tinha envenenado mortalmente 3 ou 4 familiares dele, de que não gostava. Fiquei atónito! Então era este homem que iria agora confeccionar a comida para todos nós? Fui falar com ele e indagar directamente sobre a história; pois, com uma calma e naturalidade muito próprias das crendices daquelas tribos a que pertencia, explicou-me que as pessoas em causa andavam a fazer muito mal a toda a população, e os chefes da aldeia recorreram a ele para pôr cobro à situação “tout court”. Para ele, tudo tinha sido normal, mas não para mim; mas o homem, que até tinha bom ar (seria do físico????), logo me adiantou que “aquilo” só funcionava lá na tribo dele e que não podia, mesmo que quisesse, fazer nada ali.
Foi com alguma desconfiança que provei os seus primeiros cozinhados, que até estavam óptimos, e ninguém morreu envenenado na companhia, até à sua extinção.
Recordo hoje o Mazive, mais pela sua belìssima figura, do que por este facto que aqui relato.
Olá João. Percebo o receio de o colocar à frente da cozinha, tendo essas experiências - vamos chamar assim- no passado. Não faço ideia o que faria se estivesse na tua situação.
ResponderEliminarÉ com muita curiosidade que leio ou ouço sobre as experiências da guerra. Apesar de o questionar algumas vezes, o meu pai manteve-se, sempre, em silencio absoluto sobre os anos em que esteve em Angola. Um abraço e bom fim de semana.
Isso é o que se chama... comer com o inimigo, rsrsrs (já que não era de bom tom comê-lo, claro está).
ResponderEliminarImagino-o assim uma espécie de Seal em bruto. Um diamante negro por lapidar, enfim. Um Mazive massivo.
Realmente vocês estavam muito isolados. Os horizontes eram tão desimpedidos que, ao fim de uns tempos, eram capazes de se tornar demasiado asfixiantes, não?! O que não deixaria de ser paradoxal.
Estes teus relatos são muito saborosos - quase tanto como a papinha do Mazive, eh eh eh...
Bom fds e um abraço.
Gostei do relato. Dei por mim a imaginar como seria o Mazive. Foste corajoso em provar os seus cozinhados!
ResponderEliminarAbraço
Adoro ouvir histórias da guerra colonial. África é um continente fascinante, nasci e vivi lá até aos quatro anos, infelizmente só tenho recordações muito vagas.
ResponderEliminarIsso é que foi coragem, olha se fosse um espião inimigo encarregue de envenenar a tua companhia?´
Hé hé, um abraço.
obrigado por mais uma excelente crónica, Pinguim. a leitura fez-me lembrar as colunas que referes, intermináveis, que quando apanhávamos na estrada nalguma viagem de carro, demoravam horas a ultrapassar, sobretudo se era nalguma estrada de terra batida, semi-destruída pelas chuvas. enfim, trabalhos e aventuras de quem teve a vivência africana. é tão interessante 'encontrarmo-nos' tantos anos depois, a trocar experiências que compartilhávamos quando, de certo maneira, vivíamos tão afastados.
ResponderEliminargrande abraço (comovido e grato pelas memórias)
miguel (innersmile)
Imagino os sentimentos que te avassalaram a mente quando leste o episódio do envenenamento...
ResponderEliminarAbraço!
era considerado na sua aldeia natal uma espécie de feiticeiro, com alguns poderes e sabedor de algumas «mézinhas», e fazendo uso delas, tinha envenenado mortalmente 3 ou 4 familiares dele, de que não gostava.
ResponderEliminarum verdadeiro relato de estilo literário, embora real. Ao contrário do que escreves, eu sublinho o relato do que a figura. Excelente!!!
Amigo Dário
ResponderEliminareu não estranho esses silêncios do teu pai, pois é difícil transmitir tanta coisa de variados tons que por lá aconteceram; só o distanciamento no tempo, o vai permitindo.
Abraço.
Caro João Manuel
ResponderEliminarpodes não acreditar, mas ao escrever este texto, e ao recordar a figira imponente do Mazive, foi a imagem do Sade que me veio à lembrança.
quanto a "dormir com o inimigo", ele nunca o foi e eu dormi sempre só, na minha companhia; apenas meia dúzia de vezes me deitei acompanhado, como já referi na crónica anterior, mas foi tudo menos para dormir...eheheheh.
Abraço e bom resto de fim de semana.
Amigo X
ResponderEliminarse conheces o Seal, podes ter uma ideia do corpo, mas com uma cara mais geitosinha...
Abraço.
Amigo P.
ResponderEliminaraquela foi uma guerra muito especial, ainda bem longe da sofisticação das "armas" que são usadas actualmente, quer nas guerras quer em atentados; era uma "guerra pura", se a uma guerra se pode chamar isso, e digo-o na presunção de que quase se improvisavam as situações, devido à carência de meios, de parte a parte...
Abraço.
Acho admirável o despojamento com que aqui filtras este episódio, mostrando que até na pior das circunstâncias - a guerra - o melhor do homem também pode salientar-se! Refiro-me à tua visão. Ao mesmo tempo, perturbador, por contraste com a envolvente de violência que vocês certamente suportaram e que não referes. Bem hajas! Abraço!
ResponderEliminarMeu caro Miguel
ResponderEliminarComo te expliquei por mail enviado, isto é uma série, que pretende explanar o percurso da minha vida militar, que foi, como muitas outras coisas da minha vida, e ainda bem, muito rica de vivências; baseado no inicio, numa rima que me saíu, na altura, algo infantil na forma, mas de conteúdo muito verdadeiro e a que dei o nome de "A tropa cá do João", a qual, a teu pedido, já te enviei, pois tal como a grande maioria do blog, se perdeu, num incrível lapso, e que o amigo Lampejo, com os seus dotes informáticos, me recuperou quase totalmente, à excepção do período de um mês, salvo erro (claro que as fotos e os vídeos estão irremediàvelmente apagadas, mas isso não é o mais importante, que são o texto e os respectivos comentários). Assim, fui analisando, num primeiro texto, o meu tempo inicial de Mafra (na E.P.I.), depois sucessivamente, a minha estadia de 4 meses na Guiné, o regresso a Mafra, para frequentar o curso de capitães milicianos, e finalmente Moçambique; aqui tenho dividido os textos, pelo início, antes de saber para que local iria (quando estava na Beira), depois o "embate" com a companhia que me destinaram, e ùltimamente, tenho vindo a relatar alguns factos mais relevantes desta estadia naquela região de África; ainda há mais 2/3 episódios a relatar, até ao eclodir do 25/4/74, e suas consequências nessa minha aventura africana, que levou ao fim, um pouco antecipado,(que bom...) da minha vida militar.
Se me alargo neste comentário, é porque te interessaste realmente por estas crónicas, de que te mandei cópias das que possuo (2 estarão irremediàvelmente perdidas), e porque gostaria de dar uma ideia aos amigos mais recentes das causas do aparecimento destes textos;claro que me dá prazer escrevê-los, mas é necessário uma certa pré-disposição para o fazer; daí, o aparecimento de uma crónica, de tempos a tempos.
Abraço para ti, meu caro Miguel, que verás, estou certo, ainda mais pontos de convergência com a tua vida naqueles sítios, quando eu "chegar" a Nampula...
Caro e "velho" amigo Lampejo
ResponderEliminarpois tudo isto que relato no comentário anterior, estás farto de saber, mas nunca é de mais dar-te o meu agradecimento enormìssimo, por todo o trabalho que tiveste a "desenterrar" o passado deste blog, e com que emoção, vou lendo os diferentes posts que já me enviaste. Ficam muito bem guardados num folder especial, para os poder consultar, quando quiser ou seja necessário, mas o teu nome estará, para sempre a eles ligado.
Abração.
Obrigada pelas visitas e palavras sempre ternas que me deixaste
ResponderEliminarAté breve
Semelhança
É ser quase invisível ser presente.
Na distância é que os astros aparecem;
E nas profundas trevas sepulcrais
É que podemos ver
Esta figura humana da Tragédia,
Esta máscara grega que faz medo
Aos deuses e aos demónios! Esta imagem
Acendida de cores palpitantes,
Além das quais se escondem num tumulto,
Outras vagas imagens, pretendendo
Vencer e dominar, romper a névoa,
Surgir à luz do dia!
Só nas trevas,
Se ilumina a expressão das criaturas,
Como um céu nocturno, Ó lua nova,
O teu perfil de prata que me lembra
O perfil de Virgílio a revelar-se
Na morta escuridão de dois mil anos.
É nas trevas que as almas aparecem.
E a sua face externa, dimanando
Este ar humano a arder em luz divina
Ou toldado de fumo enegrecido:
O relevo mais alto
Dum rosto que se anima, aquele traço
Que melhor o define, aquele modo
De olhar e de falar, aquele riso
Ou de anjo ou de demónio;
Este ar inconfundível e perpétuo
Que trouxemos do ventre maternal.
Fulgura na beleza amanhecente
E conserva acendida, entre as ruínas
Da trágica velhice,
A monótona lâmpada soturna,
Em melancólicos lampejos frios.
E inalterável paira sobre a face
Gelada dos cadáveres.. .
E dela se desprende; e, já liberto,
Em vulto de fantasma,
Fica, por todo o sempre, a divagar
Entre o luar e a noite, o Céu e a Terra.
Luís, meu bom amigo
ResponderEliminaracho um pouco redutor, perdoa-ma, usar uma frase que "saíu" bem, para defenir um estilo ou uma forma de escrever; é denasiada gentileza da tua parte, pois eu, já te tinha dito isso, escrevo completamente, como se diz, ao "correr da pena" e é extremamente raro estar à volta com uma palavra mais adequada para fazer luz sobre uma situação. E como são relatos pessoais, muito intensamente vividos, mais essa forma de escrever ganha contornos mais nítidos.
Obrigado pela tua especial leitura do texto, pois embora seja o conteúdo o que geralmente se comenta, a forma também é importante, tens razão nisso.
Abraço.
Amigo Ratodocampo
ResponderEliminarpese embora o facto de haver uma certa acalmia naquela zona, nos tempos que lá estive, não passei de lado sobre situações de gravidade e perigo, de aspectos vários, e que talvez relate aqui num próximo episódio; a situação de isolamento era incontornável e insuportável, podes crer...
Abraço.
Querida Jasmim
ResponderEliminarcomo se pode passar pelo teu blog e ficar indiferente tanto à forma, como ao conteúdo? Impossível...Assim , são desnecessários os agradecimentos, antes pelo contrário, eles devem-te ser enviados pela partilha, que dia a dia nos ofereces.
Lindo, o poema que aqui me deixas.
Um beijinho amigo e muito agradecido.
Olá sou um grande cusco e quero saber qual é o teu sonho. Passa lá pelo meu cantinho para saber como é.
ResponderEliminarUm abraço.
OK, amigo P.
ResponderEliminarVou começar daqui a pouco a minha "ronda" pelos blogs.
Abraço.
Li mais este agora e achei piada sobretudo a ele ter dito que" mesmo que quisesse...."rrrssss
ResponderEliminarSe o homem era jeitoso, é natural que te lembres mais dessa faceta :)) Realmente, em termos de tomada de decisão (não faço ideia se poderias tê-lo mandado para outro posto), era arriscado, mas assim pelo menos esclareceste desde logo as tuas preocupações e passaram a comer melhor :)
P.S. O Capitão era um bom líder! :))beijinho(outro dia leio outro)
Eva
ResponderEliminarnunca as palavras "deus negro" expressaram tão bem um físico de um homem negro; se fosse hoje e fosse bem aproveitado faria furor como top model...o pior seriam as mézinhas...
Beijito.