domingo, 5 de setembro de 2010

Passado e presente 17 - "Ainda e sempre Cesariny"

...Durante anos, o Reimar, na rua das Pretas, foi um templo de visita quotidiana obrigatória. Chegava-se lá e a "coisa" já estava montada. Quero eu dizer: havia sempre qualquer "coisa". Ao pé "daquilo", Fellini era Cecil B. DeMille. As empegadas, a Mena e a Mina, tinham as vozes sempre no tom e na altura em que a Maria Callas brilhava. Quando chegava a hora do tiroteio, faziam do balcão uma trincheira, deitavam-se no chão e esperneavam como se estivessem ligadas à corrente eléctrica. E, se calhar estavam!
O senhor Manuel da Hortaliça, ou do Bairro Alto, que antes tinha descido o Chiado entre a mulher, dedicada enfermeira dos Hospitais Civis, e o amante, aprumado marujo do Alfeite, ameaçava (ou estaria a oferecer conteúdos?) a tropa especial, agitando a pochette. E dizia para as "amigas": "Vai com este, que é muito limpinho e não mexe em nada".
Nesse magnificente antro, havia de tudo: putas e homens "coisa e tal", chulos e travestis, artistas e ladrões, professores primários em crise de identidade e fadistas (com e sem voz), operários e vagabundos sem eira nem beira, filósofos ocultistas e jornalistas (proíbidos, sob ameaça de morte, de falar do que ali se passava), funcionários públicos casados, mas com heterónimos sexuais, milionários em fuga para um Egipto qualquer, poetas e pintores, maiores e menores.
E, se Cesariny era um enviado do fogo, havia também apolíneos e dionisíacos, enviados (alguns fardados) dos outros três elementos, terra, mar e ar, a que se juntavam , em temível contraste, anões, gigantes coxos, zarolhos, corcundas, gagos e mudos.
"Tudo boa gente", dizia Cesariny. E acresentava: "Comparado com isto, o que Ulisses viu na viagem de regresso a Ítaca era banal...".
Por entre a ginginha e as imperiais, de que a Mina e a Mena bebiam golinhos, antes de as entrgarem aos clientes ("é para ver se estão fresquinhas", diziam), falava-se de Nietzsche e do marujo da mesa ao lado.
Ali estávamos como se estivéssemos em plena Idade Média, o seu tempo histórico do Ocidente preferido ("Com tanta treva e tanta peste, deviam querer aproveitar bem o tempo, divertindo-se muito...", explicava)...


(texto de José Manuel dos Santos), in "Mil folhas" de 8/12/07


P.S.-Tive a felicidade de conhecer este maravilhoso "antro", e de conhecer o senhor Manuel das Couves, como também era chamado, sósia do Nelo, do Herman, de há uns anos atrás, e que educadamente me cumprimentava sempre que comigo se cruzava, estivesse eu com quem estivesse...


Este post foi inicialmente publicado no blog, no dia 22 de Dezembro de 2006.

20 comentários:

  1. parece muito o bairro da Lapa aqui no Rio de Janeiro

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  2. Saudades dos tempos idos, vitórias dos tempos modernos: já não há marés nem marinheiros, filósofos ou poetas - agora ficamos em casa escrevendo em teclas suaves, sem voz activa, a ver andebol; podemos casar, ter filhos sem mulheres, definimos bem os géneros e as orientações; e se saímos já não há a clandestinidade de outrora pois todos assumimos as nossas vivências sem surpresas...

    Abraço grande!Também ao Deján!
    P.S. - Da tua casa, lembro-me das escadas escuras, de torcer o pé e levar uma boa massagem :o)

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  3. Endim
    este bar já não existe há muito e estava excelentemente situado, quase ao lado da mais conhecida avenida de Lisboa; e o que é curioso é que as poucas vezes que ali entrei nunca senti medo algum - apenas um bar muito bizarro.
    Abração.

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  4. João
    em três pinceladas, mostraste a diferença de vivências, de há umas décadas a esta parte.
    Eu quase tenho a certeza que nunca entraste no Reimar, mas também tenho a certeza que terias adorado.

    Atenção que as escadas sem luz, foi porque vocês não abriram a luz; e diz-me lá se não soube bem levar uma massagem dada com tanto carinho pela pessoa amada.
    O teu abraço ao Déjan será dado "ao vivo" na noite de quarta feira (chego a Belgrado pelas 10 da noite).
    Abraço grande.

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  5. o texto é maravilhoso! a realidade tem o cheiro de outro tempo, de outros antros. não sabia que havia gente como o Nelo... lol esse Manuel devia ser cá um cromo!

    abraços e boa viagem!

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  6. que bela história, Pinguim. Não conhecia o Reimar nem o Manuel das Couves, e tenho a certeza, por esta breve aproximação, que há-de haver histórias fabulosas relacionadas com o tema. vou investigar.
    abração

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  7. Paulo
    O Manuel das Couves era uma personagem por demais conhecida da Baixa lisboeta; era um homem de cerca de 50 anos, algo afectado, claro e que vendia castanhas, no tempo delas, sempre no mesmo sítio, nos Restauradores, junto ao Avenida Palace Hotel.
    E quando começaram a aparecer os primeiros telemóveis, daqueles grandes e pesados, ele logo arranjou um, o que tornava divertido para as pessoas verem um simples vendedor de castanhas com uma coisa tão moderna e que pouca gente tinha.
    Era muito educado, e bastava ter visto alguém no Reimar, depois falava sempre, o que causava alguns embaraços a certas pessoas que iam acompanhadas; mas ele não o fazia por mal, era assim mesmo.
    Imagino-o com mulher e filhos e quem sabe se não foi mesmo fonte de inspiração para o Herman construir o boneco Nelo.
    Abraço amigo.

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  8. Miguel
    O Reimar era um dos locais mais loucos dessa Lisboa, bem curiosa desses tempos.
    Mas não era único: havia ao cimo do elevador da Glória um bar com alguma apresentação, ali ao lado do Instituto do Vinho do Porto, e que se chamava "Harry's Bar". O dono era um sujeito pequenino, de idade indefinida, muito amaricado, que muitas vezes usava adereços femininos extravagantes e que se chamava "Joaninha".
    Aí, pelas 2/3 da madrugada, lá dentro o ambiente era fantástico e algo parecido com o do Reimar, com uma fauna variadíssima e onde se podia além do mais comer um caldo verde quentinho de madrugada, que sabia muito bem.
    Sítios destes não existem mais...
    Abraço grande.

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  9. Porque é que os tempos idos parecem sempre mais interessantes do que os de hoje?

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  10. Do Harry's lembro-me e com a recente maioridade cumprida. A partir daí foi a perdição...

    Bom regresso aos Balcãs...Muito Amor na bagagem!

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  11. Speedy
    a oferta de lugares, a variedade e a facilidade levaram-nos a um automatismo, em tudo o que tem a ver com a vida.
    Naquele tempo, as carências eram tantas, que havia que improvisar e apareciam estes sítios que acabavam por satisfazer uma multiplicidade de pessoas, uma grande variedade de necessidades; por isso eram espaços muito ricos, cheios de vida e de vivências...
    Abraço amigo.

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  12. João
    mas pelo menos recordas-te dele...
    Ele durou mais uns anitos do que o Reimar.
    Abração.

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  13. Estes teus posts sobre o "antigamente" são, como diria Carlos Pinto Coelho no Acontece, gostosos.
    Foram tempos interessantes sem dúvida. Será que daqui a alguns anos se vão recordar os dias de hoje como actualmente recordamos os passados?
    Abraço.

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  14. Miguel
    provavelmente que sim; o mundo evolui tão rapidamente que tudo o que se passa hoje, daqui a 30 anos é de um passado muito distante.
    Abraço grande.

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  15. Boa noite Joao!

    Passei a deixar-te o meu abraco, lamentando as poucas visitas, mas o tempo teima em se fazer cada vez mais curto.

    Gostei do post :-)

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  16. Olá Francisco
    percebo isso perfeitamente e não fiques preocupado.
    A partir de amanhã será a minha vez de abandonar um pouco os blogs, já que vou para Belgrado, passar 20 dias com o Déjan
    Abraço amigo.

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  17. Ehehe caricato mas um lugar intrigante!! Interessante também como este post reporta a tantos passados! O da historia, o da escrita e o da altura em que o publicaste pela primeira vez. Contudo na verdade, não é assim tão diferente dos “antros” de agora!! A essência mantem-se! Um abraço

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  18. Caro André
    tens razão quanto aos passados, que são vários.
    E também aceito bem os adjectivos de "caricato" e de "intrigante".
    Já não estarei tanto de acordo que seja semelhante a certos "antros" de hoje, pela simples razão de ser quase impossível reunir num só local tanta variedade de gente à procura de tantas diferentes coisas.
    Um local como este era único!
    Abraço amigo.

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  19. Vim aqui pelo post da Bernarda, que me abriu o apetite...
    Conhecendo-me como me conheço, nao sei se conseguiria ser frequentador ou ir lá mais do que uma vez, mas, pelo menos uma vez, uma vezinha, queria tanto ter lá ido, só a tua e esta descrição...cheira-me a madeira e a fumo, e imagino em tons sépia claro. Estou aqui fascinado...juro.

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  20. Ima
    como poderás imaginar, eu era tudo menos um frequentador assíduo do Reimar, mas não por medo, longe disso...
    Passei por lá, sempre em agradável companhia e era fascinante.
    Há uma imagem comparativa com aquele bar do filme "Querelle" em que o dono jogava aos dados para definir se havia de ser passivo ou activo, e a mulher (grande Jeanne Moreau), cantava, acompanhada do seu amante...
    Abraço amigo.

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Evita ser anónimo, para poderes ser "alguém"!!!