terça-feira, 12 de junho de 2012

Viagens - 5

Corria o início dos anos 60 quando o meu Pai me proporcionou uma deliciosa surpresa; nos negócios da nossa firma têxtil, comprávamos alguma matéria prima, lã, a uma firma inglesa, sediada no Yorkshire.
Ora tendo um dos gerentes dessa firma ido à Covilhã, o meu Pai combinou com ele uma ida minha a Inglaterra, durante o Verão, para praticar a língua inglesa e também para “desabrochar” um pouco.
A estadia seria a cargo desse senhor, exactamente na cidade de Bradford, perto da firma dele e ele teve o cuidado de escolher uma casa familiar, com quartos para alugar, onde eu também tomava as minhas refeições; pude assim ter um contacto com a verdadeira comida inglesa que adorei, com aqueles molhos magníficos. Ainda por cima e para me ajudar mais, uma empregada da casa era uma rapariguita portuguesa, a Conceição, que tinha vindo directamente da Madeira, para ali; quando começámos a falar, não percebia nada do que ela dizia, pelo que combinámos falar em inglês…Também estava ali de férias, um jovem espanhol de Barcelona, um pouco mais velho do que eu e com quem convivi bastante.
Mas antes, devo referir a viagem, a primeira ao estrangeiro, sem ser Espanha, completamente sozinho. Fui de comboio e aproveitei a companhia de três amigos da Covilhã que iam passar férias a Londres e fomos juntos. Recordo que fomos no Sud Express até Paris,tendo chegado à Gare de Austerlitz e só tivemos tempo de apanhar o metro para a Gare do Nord,
início da viagem até Calais. Ali fomos no ferry, até Dover, viagem nocturna, razão pela qual pouco desfrutei da minha primeira viagem de barco.
Quando chegámos à estação de Victória, separei-me dos amigos e fiquei entregue a mim próprio. Confesso que aquela estação me intimidou, pela sua grandeza
e fiquei sem saber bem o que fazer, já que tinha perdido o contacto do senhor e naquela altura não havia telemóveis. Era o fim da tarde e então reparei num pequeno local de acolhimento e ajuda a turistas; lá me dirigi, expliquei a minha situação e pude observar a magnífica eficiência inglesa: uma senhora começa a fazer telefonemas para aqui e para ali, e passado meia hora chamou-me e comunicou-me que estava tudo resolvido. Tinha falado para Portugal com o  meu Pai que lhe deu o contacto do senhor inglês, ela contactou-o e combinou com ele o nosso encontro numa determinada estação, um pouco antes de Bradford, Wakefield. Assim, devia tomar o comboio na linha “x”, às tantas horas, que chegaria às tantas horas a essa estação, onde o referido senhor me esperaria. Como eu não o conhecia, ela deu-me algumas referências a seu respeito tendo feito o mesmo em relação a ele. Devia pois ir comprar bilhete, e depois teria tempo para ir comer alguma coisa, ou na estação, ou ali perto.
Assim, por incrível que pareça, e como sucedeu com Paris, nada vi de Londres. Fiz como ela disse e a viagem foi divertida pois ia num compartimento com uma polaca, um russo e um inglês; os dois primeiros bebiam constantemente vodka e já estavam alcoolizados pelo que foi muito interessante aquele bocado de tempo. Quando cheguei a Wakefield, lá me encontrei com Mr. Joseph, que de carro me levou à casa onde ficaria hospedado em Bradford; foi uma sensação diferente viajar num carro com o trânsito do lado contrário, heheje…
Depois, os dias foram muito interessantes; embora Bradford fosse uma cidade bastante banal e sem grandes atractivos,
eu e o espanhol íamos conhecendo os arredores, com uma óptima piscina em Ilkley, a poucos quilómetros e Leeds, uma grande cidade era mesmo ali perto.
Fartei-me de ir ao cinema ver filmes proibidos pela censura em Portugal, entre os quais o “Dolce Vita” do Felinni e “The Servant” do Losey.
Sempre que podia, Mr.Joseph ia buscar-me para me levar a diversos sítios: fui conhecer a sua empresa e almoçar com a sua família e então fui ver coisas muito interessantes: um jogo de futebol a Old Trafford, em Manchester, entre o United e o West Bromwich Albion;
um jogo de críquete (uma seca, pois não percebi nada, em Birminhgam), corridas de cavalos, em York, uma cidade linda, linda,
e ainda fomos a Sheffield, Coventry, sei lá mais onde. Coventry tinha a catedral velha completamente destruída durante a 2ª.GG, e a nova, maravilhosa obra de arquitectura, ali perto.




O meu relacionamento com o catalão era óptimo, tendo-me ele convidado a visitar Barcelona no ano seguinte, o que fiz. Não sei porquê, mas hoje penso que ele seria homossexual, mas eu, nesse tempo, ainda não era devasso para descobrir essas coisas, hehehe.
Um mês depois, a falar muito melhor a língua inglesa reuni-me com os meus amigos na estação de Victória para a viagem de regresso a Portugal.
Como não tinha levado muito dinheiro e embora lá não tivesse gasto muito, estava sem cheta, no comboio. Os meus amigos ainda reuniram os últimos trocos para uma refeição baratinha no Sud, mas eu fiquei no meu lugar; o meu espanto quando uma senhora já de idade, muito simples no vestir, toda de preto, com um lenço na cabeça, pensei que era uma emigrante, me perguntou porque não tinha ido com os meus amigos, comer. Eu menti e disse que não tinha fome; ela riu-se e disse-me que pensava num neto dela, mais ou menos da minha idade e que se ele estivesse na minha situação, com fome e sem dinheiro, gostaria que alguém o ajudasse, pelo que me convidava a ir almoçar com ela ao restaurante do comboio; pois não me fiz rogado e imaginem a cara dos meus amigos, a ver-me almoçar no Sud, enquanto eles comiam umas sandocas…
Afinal a senhora era da família Calheiros, mãe do então Conde da Covilhã, e até conhecia pessoas da minha família.
O que de maravilhoso nos acontece numa viagem!
Paris e Londres ficaram adiadas.

P.S. - Só agora e bem recordado pelo amigo Coelho, vi que já tinha referido algo desta viagem no post "Viagens - 2".


36 comentários:

  1. João
    quantas recordações...
    Abraço amigo.

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  2. Supimpa o relato! E essa mãe-de-conde, uma simpatia! Quase pude ver seu sorriso bondoso!! Belas lembranças, meu amigo.

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  3. Edu
    mais tarde, fui procurá-la e ofereci-lhe um presente.
    Abraço amigo.

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  4. Francisco
    se é...enquanto escrevia este texto, pareceu-me viver tudo, de novo.
    Abraço amigo.

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  5. Seriam tempos diferentes dos de hoje...mas a memória, a arte e a história permanecem! Escapando-te a capital, conheceste outras pérolas da velha ilha!
    (E a sorte e paciência protegem os audazes - e famintos!!!)

    Um grande abraço, João!

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  6. Joãoeu pouco me importei de não ter conhecido Londres nesta viagem, pois seria sempre mais fácil visitar essa cidade do que passar um mês no coração da Inglaterra e conhecendo os seus hábitos de vida.
    Gostaria de ter podido fazer isso noutros países.
    Abraço amigo.

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  7. fantásticas as tuas aventuras e a eficiência inglesa. e ainda mais a mão amiga da senhora da tua terra, a bondade dela foi tocante.
    nunca andei no sud express, irei um destes dias, porque adoro comboios (o meu avô foi chefe de estação lá na minha terra).
    bjs.

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  8. Margarida
    eu viajei tanto e vi e aprendi tantas coisas nas minhas viagens, que por vezes me é difícil seguir uma cronologia, embora as tenha a todas elas, aqui bem presentes na memória.
    E se soubesses o imenso prazer que sinto ao relatá-las, nem imaginas...
    Beijinho.

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  9. É uma recordação fantástica, mas não a tinhas já postado? Ou estou a ter um deja vu? Lembro-me da Conceição, lembro-me do Catalão de Barcelona... Estou confuso, deve ser do trabalho ou das sardinhas de ontem...

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  10. Querido João,

    Que belas recordações. Também eu queria ter uma juventude dinâmica como aquela que tu tiveste, mas, enfim, detenho-me nos livros e nos livros...
    Achei engraçadíssimo o pormenor de que, uma vez que não entendias o que a rapariga madeirense falava, terem combinado a utilização do inglês. É caricato. :D

    abraço :3

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  11. Coelho
    agora que referiste isso, fui ver com mais detalhe esta série de "Viagens" que já postei e vi que na segunda me referi a esta estadia em Inglaterra, sim senhor; mas fui enganado pela primeira foto, que era de uma viagem escolar e pensei que todo o post falava apenas de viagens desse tipo.
    Mas pronto, aqui está um relato mais completo da forma como esta viagem aconteceu.
    E obrigado por me teres levado a rectificar isto.
    Abraço amigo.

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  12. Mark
    é que não entendia mesmo, sabes?
    Ela nem pela metrópole passou, assim era um dialecto completamente fechado e incompreensível para mim.
    Ainda és muito novo e terás muitas oportunidades para viajar; mas aconselho-te a fazer isso o mais breve possível e a fazer uma viagem sozinho, pois isso leva-nos a ter que tomar opções e a ver coisas de uma forma especial. Faz parte do desenvolvimento e da formação do ser humano.
    Abraço amigo.

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  13. Prisioneiro
    estas viagens são uma consequência de se viver num continente "pequenino", como é a Europa, hehehe...
    Abraço amigo.

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  14. As viagens deixam imensas recordações. De momento tenho-as adiadas. Apesar de adorar viajar há coisas que me satisfazem mais e como não podemos ter tudo fico com os animais da quinta. Como sou Mãe Galinha :), não consigo deixar os cavalos com ninguém, portanto...Não se consegue conhecer a personalidade de um cavalo de um dia para o outro e o Quick é um animal que precisa da nossa presença para estar bem. Os cães adaptam-se mais facilmente. Beijinhos

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  15. Mary
    com cavalos será mais difícil, mas mesmo com cães e gatos não é fácil, mas lá se vai conseguindo.
    Naquela altura, não tinha esses problemas; e agora, como vivo com um amigo e temos vidas sentimentais separadas, quando um viaja, o outro trata das gatas, hehehe...
    Beijinho.

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  16. Paulo
    sim, não me posso queixar; conheci, e bem, a maioria dos países da Europa.
    Agora o meu destino, por razões óbvias é quase sempre o mesmo: a Sérvia.
    Mas já fui com o Déjan a Madrid, Londres, Milão, Croácia e Budapeste.
    E mostrei-lhe quase todo o Portugal.
    Abraço amigo.

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  17. Nessa altura das nossas vidas, viajar sozinhos faz-nos crescer imenso, aprendemos a desenrascar-nos e a ser mais independentes.

    Realmente eram outros tempos e também se viajava de outra maneira. Deve ter sido uma viagem inesquecível e o episódio da senhora no comboio é notável.

    Abraço amigo.

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  18. Que grande aventura, um abraço

    Adoro estes posts sobre viagens

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  19. Arrakis
    naqueles tempos, em que a abertura do mundo não era tão fácil, como hoje a Internet nos permite, era fundamental para o nosso desenvolvimento.
    Mesmo assim, nada há como o contacto real com as pessoas e com as situações, para aprender a realidade da vida.
    Abraço amigo.

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  20. Sérgio
    até nem foi uma das maiores aventuras, em viagens.
    Há melhores, hehehe...
    Abraço amigo.

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  21. Gosto tanto de ouvir histórias de viagens!
    Mas olha a sorte, em cada esquina do mundo existe um português e hoje cada vez mais.
    Gostei da contradição de ver coisas interessantes, mesmo sendo uma seca e não entender nada (críquete):)



    A minha primeira vez sem contar Espanha, foi Paris de combóio com uma amiga nos finais dos anos 70 adorámos passar a noite no vagão cama e acordar já em Paris, mas tínhamos os pais a tomar conta de nós e não nos faltou nada.

    Bjo

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  22. Mz
    eu nunca teria visto um jogo de críquete se não me tivessem levado lá; e mesmo sem perceber foi uma experiência diferente.
    Uma vez, eu e um "namorado" de ocasião, demos um salto a Madrid no Lusitânia Expresso; o que foi original é que saímos depois de jantar, de Lisboa, numa noite de fim de ano, passámos a meia noite a dormir, no comboio, e chegámos à estação de Atocha, fresquinhos, pelas seis da matina do 1º.de Janeiro - foi diferente!
    Beijinho.

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  23. Os meus post´s favoritos. Manda mais, meu caro. É um prazer ler-te! Fico ébrio com tanta cultura!

    N.B. West Bromwich Albion
    (no futebol, não tens hipóteses:))

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  24. Dylan
    nada melhor que estas viagens para nos cultivarmos...
    Já está feita a emenda; aliás, em Inglaterra é mais conhecido por WBA.
    Abraço amigo.

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  25. Uma viagem inesquecível!
    Gostei muito do teu relato e descrição!

    Abraço :3

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  26. Hórus
    uma pessoa só se dá conta de quão inesquecíveis estas viagens são, quando, ao escrever sobre elas, passados tantos anos, nos lembramos até dos pequenos pormenores.
    Abraço amigo.

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  27. ó João, ou eu estou a fazer uma grande confusão, ou já tinha lido sobre esta tua estadia em Inglaterra. já estive à procura aqui no teu blog, mas não encontrei.

    adorei o post, claro. encanta-me a tua escrita, a naturalidade e a franqueza com que falas nas coisas, e o modo como a tua prosa é ao mesmo tempo, íntima e impressiva.

    só tenho pena que esta série das viagens seja tão espaçada (isto sou eu a reclamar eheh)

    grande abraço

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  28. Miguel
    tens toda a razão.
    Eu pretendia pôr nesta rubrica uma certa cronologia, o que é muito difícil dada a distância dos factos.
    Sucede que em "Viagens - 2", eu referi alguma coisa sobre esta viagem, embora o post se referisse a viagens "de estudo"; e falei nisso porque de certa forma, também esta viagem foi de estudo (da língua inglesa). Mas esqueci-me que já tinha falado na viagem e acabei por falar agora dela, em tom mais detalhado.
    Abraço amigo.

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  29. bem me parecia que conhecia aquele início:-)
    Mantiveste contacto com a senhora quando chegaram a Portugal?

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  30. Ima
    foi uma confusão com estas histórias, mas não faz mal, já que aqui as coisas estão mais pormenorizadas e mais documentadas do que no outro post em que referia, em parte, esta viagem.
    Sobre a Senhora em questão, telefonei-lhe mais tarde a agradecer, mas ela não vivia na Covilhã, mas sim em Lisboa; o filho, tinha uma magnífica casa, no início da subida para as Penhas da Saúde, mas só lá ia de vez em quando.
    Abraço amigo.

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  31. Olá João
    Hoje acordei ao som da musica do teu blog, maravilhosa, e passei pelo teu blog e contigo na tua memória até Inglaterra. Gosto destas tuas partilhas de vida fantásticas. Tu em jovem devias ter uma aura qualquer... pois conseguias sempre a caridade de alguém, é certo que os tempos também eram outros! Um abraço do Pedro Francisco

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  32. Pedro Francisco
    que bom ver-te por aqui.
    Sabes que essa aura ainda hoje me acompanha um pouco?
    Sou procurado muitas vezes por variadas pessoas, nomeadamente gente da blogosfera, por mails ou outros meios para me exporem problemas ou situações especiais...
    Por vezes, sinto-me um pára raios, e é preciso muita sensibilidade e muito equilíbrio para não feris susceptibilidades.
    Abraço amigo.

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