segunda-feira, 23 de setembro de 2013

"E agora, lembra-me"

"Viver com HIV e VHC (hepatite C) não é uma novidade para Joaquim Pinto, que contraiu os vírus há cerca de 20 anos. 
Será, no entanto, com espanto de novidade que percorremos as quase três horas de "E Agora? Lembra-me", filme autobiográfico em que acompanhamos um ano da vida de Joaquim, entre o campo onde vive, os ensaios clínicos em Madrid, o amor por Nuno, os cães, os amigos, as memórias e, como que condensando todos, o seu mundo interior, que espoleta em tantas direcções quantas consegue a consciência humana. 
Um filme que é uma partilha. "Quando me estava a preparar para este tratamento (em Madrid), percebi que praticamente não havia filmes actuais sobre o HIV feitos na primeira pessoa. Eu achei que era altura de alguém fazer um filme na primeira pessoa", conta-nos Joaquim. 
É, de facto, assim que acontece, com Joaquim a contar a história ao longo de todo o filme. 
Narrador presente e participante, que não inibe nunca a câmara: "Acho que o cinema tem a ver com exposição, tem a ver com luz, tem a ver, precisamente, com o mostrar alguma coisa. E também acho que não tenho nada a esconder." 
A sequência do filme decorre tal qual um diário de bordo, em jeito cronológico, onde podemos seguir Joaquim ao ritmo do tratamento a que se submeteu, um estudo clínico com medicamentos ainda não aprovados: "O filme foi feito na altura em que eu estava a fazer este tratamento muito complicado, com efeitos psicológicos muito pesados. Muitas vezes, fiquei surpreendido com o material que tínhamos filmado, porque devido a esses efeitos não me lembrava de muitas coisas."
 Se "E Agora? Lembra-me" surge também como exercício de memória - onde a narrativa de mistura, sem ordem aparente, entre desabafos quotidianos e episódios da vida de Joaquim -, isso não se deverá nem aos efeitos secundários dos medicamentos nem ao cansaço produzido por eles. 
Joaquim explica: "Há muitas pessoas que passam por situações extremas na sua vida que implicam uma reflexão. Muitas vezes, isso tem outro lado, que é o de permitir fazer um certo balanço não só em relação ao passado, mas em relação ao que é a vida, ao que é estar vivo." 
É assim que balançamos para cá e para lá, à boleia de João César Monteiro, Kurt Raab, Raul Ruiz, Guy Hacquenghem, Henri Alekan, Serge Daney, Copi, Claudio Martinez, amigos e companheiros de trabalho de Joaquim Pinto que aqui integram, sem dúvida, o seu panteão. 
"A doença teve em mim um efeito imediato que foi o de me ajudar a distinguir o que é realmente essencial. Por outro lado, teve o efeito de me aproximar das pessoas com quem, de facto, tenho alguma coisa a ver. E, se calhar, de afastar as amizades que eram só circunstanciais." 
Nuno Leonel, marido de Joaquim, é uma das "personagens" constantes no filme, um pilar presente/ausente que dizia ter coisas mais importantes para fazer do que participar no filme. "Cuidar de nós", conta Joaquim no filme. E, a nós, explica-nos: "Nos primeiros meses estive mais ou menos sozinho. Acho que há um momento de viragem que se percebe no filme, um momento em que o Nuno se aproxima e, a partir daí, o filme passa a ser feito pelos dois." 
Muitas das filmagens estiveram a cargo de Nuno Leonel, como faz questão de deixar claro Joaquim: "Não fui só eu a fazer o filme. Foi feito em colaboração total com o Nuno." 
"E Agora? Lembra-me" é também um filme sobre os sinais num mundo que Joaquim reconhece estar cego, por sermos, como diz, constantemente bombardeados com solicitações. 
"Há sempre coisas inesperadas e o mais importante é estarmos atentos aos sinais que diariamente nos iluminam, e não os negar." 
Uma crença na simplicidade das coisas, como nos diz, que não apresenta como manifesto ou revolta, mas como partilha: 
"O que quis fazer com este filme é dar espaço às pessoas, sem lhes dizer 'eu penso isto ou aquilo'. Quis, sim, partilhar um bocadinho as minhas dúvidas. Se este sentimento de inquietação positiva puder ser transmitido, eu acho óptimo."


 Este é um texto do jornal “i”, mas eu quero dizer algo mais.

Este filme marcou-me profundamente e em vários sentidos.
É um filme culturalmente brilhante, com pormenores técnicos fabulosos; é um filme profundamente comovedor e corajoso onde o realizador expõe a sua doença, os seus problemas, mas também as suas dúvidas e o seu amor (a figura de Nuno é fundamental).
Poucas vezes tenho visto cães filmados com tanto amor, sim, não me enganei, e os quatro cães são importantes no filme.
A um nível pessoal, achei uma coincidência a referência a uma pessoa que tão bem conheci, a Jo e a dois filmes que marcaram a minha vida: “A imitação da vida”, o primeiro filme que eu comentei num jornal, no início dos anos 60, quando estudava em Castelo Branco e a espantosa cena de Laura Betti, quando é enterrada viva a seu pedido no filme “Teorema” de Pasolini.
As citações maravilhosas de tanta gente, de Santo Agostinho a Ruy Belo, as referências muito bem “delineadas” a personalidades como Marx, Freud, e tantos outros.
As constantes alusões à Bíblia, à religiosidade do Nuno e a sua (do Joaquim) visão do Catolicismo, tão parecida à minha…
As recordações do passado, desde a infância, às viagens e estadias em países diferentes, a constante alusão aos Pais, aliás o seu Pai, com mais de 90 anos esteve presente na sala.
A actualidade do momento em que vivemos, a crise aqui e no mundo, os fogos, numa palavra, um olhar atento à realidade actual.
Enfim, e eu espero que o Joaquim viva muitos anos, mas este filme é desde já um testamento da sua vida e obra.

Não posso esquecer que este filme ganhou um dos mais importantes festivais de cinema, na sua última edição, Locarno.


É obrigatório que este filme maravilhoso possa ter uma exibição comercial para que possa ser apreciado por muita gente pois é um acto de verdadeira Cultura.
E agora, Joaquim?
Obrigado, a ti e ao Nuno!
Sim vamos lembrar-nos, é impossível esquecer este filme.

22 comentários:

  1. Obrigado pela divulgação, João.

    Viver com ambos os vírus não deve ser nada fácil. Dar a cara assim, ainda menos. É de salutar.

    abraço.

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    1. Mark
      mais que assumir a homossexualidade ou a doença é a enorme e comovente dignidade com que Joaquim Pinto o faz.
      Abraço amigo.

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  2. concordo em absoluto, o filme devia passar no circuito comercial. pode ser que a medeia apanhe a ideia :)
    bjs.

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    1. Margarida
      hoje estive a onversar com o João Ferreira, o director do Queer, que me garantiu que sim, que este filme que vai estar presente no próximo Doc Lisboa, e a concurso, e com fortes possibilidades de ser o vencedor, irá entrar no circuito comercial.
      Também me disse que o filme só não está a concurso agora no Queer, pois é um filme subsidiado pela RTP, que também patrocina o Queer e assim para não haver eventuais conflitos com outros concorrentes, foi apresentado fora de concurso.
      Beijinho.

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  3. Faço das palavras do Mark, as minhas :) Plágio completo :)

    Uma vez obrigado pela tua partilha

    Abraço

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    1. Francisco
      neste cao não é plágio, pois quando se declara o autor do texto que partilhamos, não o estamos a usurpar.
      E fizeste tu muito bem.
      Abraço amigo.

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  4. Também fui ver. É um filme impressionante, muito corajoso, cheio de vida e de vontade de viver. E uma grande, grande história de amor, que nem a adversidade consegue colher. Uma obra ímpar do recente cinema português que devia, como muito bem dizes, passar ao circuito comercial.

    Abraço João.

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  5. E vai passar, Arrakis, como refiro aí num comentário atrás.
    Entretanto fica uma chamada de atenção para a exibição deste filme no Doc Lisboa, onde pode e deve ser visto...
    Abraço amigo.

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  6. Estava a brincar com o plágio, por eu estar a plagiar o comentário do Mark :D

    Abraço amigo

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  7. gostava tanto de ver este filme, acho que de todos os filmes do festival, era o que eu mais queria ver. fico na expectativa da estreia no circuito comercial (desde que não se fique por Lx, é claro, como muitas vezes acontece).

    como não vi o filme, acredito que não haja relação nenhuma, mas desde que comecei a ler sobre o filme do JP que me vem à lembrança um doc aí de inícios de 90, Silverlake Life, sobre uma relação marcada pela SIDA. aliás, há filmes impressionantes feitos nessa época em que a sida teve grande impacto entre a comunidade homossexual.

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    1. Miguel
      tenho a certeza que verás o filme e que irás gostar muito, muito.
      Mas atenção: este filme não é só um filme sobre a Sida, muito longe disso; é um filme "cheio", cheio de coisas belas, desde recordações, a conceitos, a amor, a gente maravilhosa, às situações do mundo actual, à CULTURA, à religião, eu sei lá, à Vida e à morte...
      Imperdível, em absoluto!!!
      Abraço amigo.

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  8. É um filme muito belo. Cru e terno ao mesmo tempo. Parabéns ao Joaquim Pinto e ao Nuno Leonel.
    Não me tem sido possível acompanhar o Festival com assiduidade, mas felizmente consegui estar lá no Domingo passado.

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  9. Sim, Paulo
    Cru e terno simultâneamente. Resumes muito bem nestas duas palavras este filme admirável.
    Abraço amigo.

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  10. Obrigado pela divulgação do documentário, João. Espero que como alguém aqui já referi o filme passe no circuito.

    Luís Galego

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  11. Vai passar, sim, Luís, depois do Doc Lisboa, onde vai estar a concurso.
    Abraço amigo.

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  12. Rosa
    quando estiver em exibição comercial, por favor, não percas...
    Beijinho.

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  13. A apresentação que fazes do Joaquim e do filme cativou a minha atenção e vou tentar encontrar o filme, tenho a certeza que vou adorar. Mais uma vez obrigada pela informação que deixas aqui. Beijinhos

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  14. Mary
    não tenho qualquer dúvida que vais mesmo adorar.
    O filme vai entrar no circuito comercial após a sua apresentação do Doc Lisboa, por iso poderás vê-lo então.
    Beijinho.

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Evita ser anónimo, para poderes ser "alguém"!!!