Pode dizer-se que há realmente coincidências.
Nem 48 horas tinham passado após a minha última postagem, em que focava a problemática do mundo homossexual, hoje em dia e a necessidade de os homossexuais contribuírem, com a sua visibilidade, para que a sociedade compreenda que não somos diferentes, quando surge no jornal “O Público” uma entrevista da jornalista Anabela Mota Ribeira ao casal Alexandre Quintanilha, biólogo e Richard Zimler, escritor, a residirem no Porto desde há anos e mantendo um relacionamento afectivo há mais de 30 anos, tendo casado há pouco mais de dois anos.
É uma entrevista longa, mas que vale a pena ler na integra, pela riqueza dos seus depoimentos, pela importância como ambos viram e vêem o mundo homossexual, o seu amor, a forma como se assumiram, enfim duas vidas que se encontraram e que agora constituem uma só vida, mas respeitando cada um o outro. Aqui encontramos muita coisa que eu havia aflorado no meu texto anterior, pelo que aqui o publico como complemento imprescindível do mesmo.
E além do mais, o amor destes dois homens é lindo!!!
"Conheceram-se em São Francisco
em 1978, mudaram-se para o Porto em 1990. Casaram-se há dois anos e um mês.
Alexandre Quintanilha tem 68 anos, é cientista. Richard Zimler tem 56 anos, é
escritor. Concedem uma entrevista única, a dois, em casa. Estão descalços.
Estão tão confortavelmente como se pode estar em casa, mesmo que esteja uma
intrusa entre eles. O propósito era falar da dinâmica da relação, dos seus
percursos individuais, de como foram tocados, e alterados, com a chegada do
outro, pela vida do outro. O propósito não era contar uma bela história de
amor, mas era evidente que aquela era uma bela história de amor. Uma daquelas
histórias por que torcem as professoras, as hospedeiras, o notário, as pessoas
que formam uma espécie de conluio (a expressão é de Alexandre) e que fazem
perguntas e mandam beijinhos. Por que é que é tão raro uma relação ser tão
feliz ao cabo de 34 anos de vida comum? É por isso que as pessoas torcem por
eles? E importa, para o caso, que seja uma relação entre pessoas do mesmo
sexo?
Para eles, fazia sentido expor a relação que vivem e correr o risco de apanhar
com rótulos, estereótipos, gavetas. Não se pergunta se são a favor da adopção
de crianças por casais homossexuais (ainda que a resposta esteja implícita na
entrevista) nem se pergunta por que é que eles acham que são homossexuais
(perguntar-se-ia a um heterossexual por que é que ele acha que é
heterossexual?). Mas pergunta-se pelo modo como lidaram com a sua
homossexualidade, familiar e socialmente.
Eles souberam, desde o princípio, que o outro era o tal. Não se enganaram.
Sorte? Sorte e trabalho, respondem os dois.
Gostava de começar, não pelo princípio da vossa vida comum, mas por um certo
princípio, que foi a vinda para Portugal. Por que é que decidiram começar uma
nova vida?
Alexandre Quintanilha - Cheguei à [São Francisco] Bay Area no princípio dos
anos 70, o Richard chegou em 1977. Conhecemo-nos no ano seguinte e passámos a
viver em Berkeley. No fim dos anos 80 aconteceram dois episódios que alteraram
a nossa forma de estar. A epidemia do HIV começou a aparecer. Houve dois ou
três sítios na América que foram muito afectados. A área da baía, e em
particular São Francisco, foi uma delas.
San Francisco tinha o rótulo de ser uma cidade onde a
comunidade gay se sentia bem. Algumas das lutas pelos direitos dos
homossexuais, encabeçadas pelo activista Harvey Milk, aconteceram aí.
A.Q. - E não só. Era um sítio onde tinha havido movimentos hippie,
onde toda a gente fumava, se injectava. A partir de 85, 86, era quase
impossível, tanto na universidade como fora dela, ir almoçar com amigos e o
tema da conversa não ser o HIV.
Richard Zimler - Como a crise, agora, em Portugal - ninguém fala de outra
coisa.
O seu irmão veio a falecer de sida. Nessa altura já se tinha declarado a
doença? Era encarada como uma sentença de morte.
R.Z. - Sim. Antes de 83, 84, ele suspeitava de que tinha qualquer coisa.
Depois confirmaram que era HIV.
A.Q. - A área da baía era um lugar de liberdade, de exploração. Tinha havido
movimentos contra a guerra do Vietname, muitos feminismos começaram lá. As
lutas em Oakland, pelos direitos dos negros, tinham sido importantes. Era uma
área dinâmica de muitos pontos de vista. E a partir dos anos 80 havia a
sensação de que não se podia escapar deste assunto. Ainda bem que nos
conhecemos em 78; não tenho a certeza, se nos tivéssemos conhecido mais tarde,
se um de nós não teria tido sida.
Conheceram-se num período em que toda a experimentação era possível. Sem
fantasmas. Isso marcou a vossa relação?
R.Z. - Eu só tinha 22 anos quando conheci o Alexandre. Mudei-me para São
Francisco quando tinha 21 anos, e estava a começar a vida sexual, a vida
espiritual, a vida profissional. Chegar à Bay Area era o começo de uma longa
viagem. Ele tinha 33 anos (na altura pensávamos que era já muito avançado na
idade...). Para os dois, era o começo de uma aventura. E de repente chegou a
sida. Eu trabalhava na Victoria"s Secret, uma firma de lingerie feminina;
era secretário. Trabalhavam lá umas 60 pessoas e diria que uns dez ou 12
eram gay. Harvey Milk disse que, quando as pessoas começassem a
sair do armário, todos íamos perceber que o carteiro era gay, que a
empregada de mesa no nosso restaurante favorito é lésbica, que o professor de
Matemática que o nosso menino adora é homossexual. São Francisco era o primeiro
sítio no mundo, pelo menos nos Estados Unidos, em que isso já estava a
acontecer.
A orientação sexual não era um assunto?
A.Q. - Deixou de ser assunto.
R.Z. - Na minha empresa, todos os homossexuais eram gente assumida, não havia
qualquer problema. Foi por isso que foi de Nova Iorque para São
Francisco? Não é um americano do Middle West, dos estados
conservadores.
R.Z. - Mesmo em Nova Iorque, mesmo dentro de uma família de gente formada... O
meu pai tinha uma licenciatura em advocacia, a minha mãe era bioquímica, mas os
preconceitos contra os homossexuais eram violentos. Quando suspeitei de que era
homossexual, entrei em pânico. Sabia que contar aos meus pais, aos meus amigos,
ia provocar problemas. Os meus pais não eram racistas, a minha mãe era
feminista; o último preconceito a perder era a homossexualidade.
A.Q. - Muito diferente da minha família.
Como é que foi consigo?
A.Q. - Os meus pais não eram nada preconceituosos. Não disse que era gay,
não existia essa expressão quando tinha 16 anos. Disse aos meu pais que estava
apaixonado por um homem e que não percebia. Não havia role models [exemplos]
para isso. O meu pai disse-me que não era uma coisa que ele percebesse, mas que
se isso me preocupava podia arranjar uma pessoa com quem eu pudesse falar. E
fui falar com um psiquiatra, duas vezes.
Só para situar: isso passa-se em Moçambique, há 50 anos, e o seu pai é um
prestigiado biólogo.
A.Q. - Na primeira vez em que estive com esse homem extraordinário, dei-lhe
a ler um diário meu. Estava convencido de que era uma obra-prima da literatura
[riso]. Na sessão seguinte, entregou-mo e disse: "Você está apaixonado.
Isso é uma sensação maravilhosa. Devia estar satisfeito por estar
apaixonado." Eu não tinha a certeza se era mesmo gay ou
se era bi. A minha mãe, a única coisa que me disse foi: "Quero é que sejas
feliz."
Onde é que radica a abertura que manifestaram?
A.Q. - Da minha mãe é muito claro. Era alemã e cresceu em Berlim nos anos
20 (era o sítio mais civilizado do mundo). Teve relações muito fortes tanto com
homens como com mulheres. O meu pai, apesar de nunca ter tido esse tipo de
sensação, não achou que fosse uma coisa preocupante. Isto libertou-me imenso.
Mesmo na África do Sul (para onde fui fazer a faculdade), já não tinha
necessidade de fingir que não era aquilo que era. Quando me aproximava das
pessoas emocionalmente, quer fossem mulheres, quer fossem homens, era de uma forma
aberta. E num sítio racista, ainda por cima.
Olhando retrospectivamente, acha que se apaixonava de facto por homens e por
mulheres ou estava a tentar perceber se era mesmo homossexual?
A.Q. - Se calhar, as duas coisas. Com 20 anos, sabemos muito pouco. Quando
temos uma grande atracção por uma pessoa, quando a atracção e a admiração, e a
paixão, se tornam muito intensas, duvido de que não haja uma parte física, seja
qual for a pessoa. Esta coisa de nos definirmos como hetero ou homo... não me
defino dessa maneira. Defino-me como uma pessoa que gosta de literatura, que
gosta de música, de ciência. Deixou de ser um label [rótulo].
O Richard acompanhou os anos finais da vida do irmão, que foram duríssimos. O
irmão tinha uma relação muito má com os pais. O Richard tinha de ir a Nova
Iorque quase todos os meses para falar com os médicos, com os padres (o irmão
converteu-se ao catolicismo), com os amigos. Quando voltava, voltava
emocionalmente exausto. Eu só tive essa sensação, menos forte mas muito poderosa,
porque dois dos investigadores que tinha contratado para o Centro de Estudos
Ambientais em Berkeley, na mesma semana, uma rapariga australiana e um jovem de
Boston, vieram ao meu gabinete dizer-me que estavam infectados com HIV. Cheguei
a casa e desatei a chorar. Como ele [o Richard] fazia quando vinha de Nova
Iorque. Começámos a pensar que precisávamos de ir para um sítio onde aquele
deixasse de ser o tópico de todas as conversas.
Aí, já não era o medo de que a doença vos tocasse directamente.
A.Q. - Não, de maneira nenhuma.
R.Z. - Eu estava preocupado com isso. Não era claro quantos anos, ou meses, a
infecção levava a mostrar-se. Estava muito perturbado. Ver um irmão com quem
nos identificamos - porque crescemos no mesmo quarto - morrer, afectou-me muito
psicologicamente. Comecei a lavar as mãos 100 vezes por dia. O meu irmão, um
jovem de 34 anos, estava a morrer e não queria morrer. Os meus pais eram
loucos. Durante esse período, e depois de ele falecer, comecei a pensar que ia
morrer jovem, que não ia ter a possibilidade de escrever livros, de manter a
minha relação com o Alexandre. E se eu infectasse o Alexandre? Ou vice-versa.
Infectar uma pessoa com quem se tem uma união deve provocar uma sensação de
culpa abominável.
O Alexandre contou um pouco da descoberta e assunção da sua
homossexualidade. O Richard aflorou o assunto. Pode contar mais detalhadamente
como viveu esse período?
R.Z. - Há homossexuais que sabem muito cedo; eu não sabia. Há certas
características que as pessoas, nos anos 60, 70, associaram a homossexuais. Por
exemplo, que não são grandes desportistas. Hoje em dia sabemos que isso não tem
qualquer validade, que há homossexuais muito machões e outros muito efeminados.
Eu pensava: "Não tenho estas características dos homossexuais. Gosto de
desporto, gosto dos Beatles, gosto dos Rolling Stones. Como é que posso ser
homossexual?"
A.Q. - Gostas de desporto e és muito bom em desporto. Isso não ligava com a
ideia do homossexual efeminado.
Nessa altura trabalhava-se com gavetas, as pessoas encaixavam aqui ou acolá.
A.Q. - Exactamente. Deixar de estar nos sítios onde há essas gavetas é
fundamental.
R.Z. - Pensava: "Não sou normal. As minhas fantasias não envolvem a Sophia
Loren ou a Gina Lollobrigida. Talvez seja homossexual. Isso vai criar tantos
problemas para mim..." Ainda por cima, não encaixava na comunidade
homossexual. "Não quero falar da Judy Garland!" Nessa altura, li um
artigo no New York Times sobre o Harvey Milk e sobre a
comunidade gay de São Francisco; dizia que havia homossexuais cowboys,
homossexuais desportistas... "Se há um sítio nos Estados Unidos onde posso
experimentar sexualmente [quem sou], sem preconceitos, sem pressões, deve ser
em São Francisco." Fui com uma mala, mil dólares, sem emprego, sem
casa.
O seu irmão era homossexual?
R.Z. - Sim.
O facto de haver um outro homossexual na família tornou tudo mais pesado
para si?
R.Z. - Terrível, muito mais pesado.
A.Q. - Ainda por cima porque o irmão dele tinha muitas daquelas características
da gaveta.
R.Z. - E não queria ser homossexual. Os outros miúdos faziam troça dele em
criança. Vivia revoltado. Eu não. Depois da fase em que entrei em pânico,
estava totalmente OK. Quando conheci o Alexandre, fiquei logo apaixonado. Quis
contar aos meus pais. "Devo contar, porque isto é uma relação, espero eu,
que vai durar." Falei com a minha mãe, com quem tinha uma relação mais
sólida, primeiro. Sempre brinco que devia ter dito: "Estou apaixonado, mas
ele não é judeu" [riso]. Mas isso para ela não seria importante. Disse:
"Estou apaixonado, mas é um homem, não é uma mulher." Antes da
resposta, continuei: "Não estou com problemas, não quero que te sintas
culpada. Para mim é um enorme prazer, é a realização da minha vida." E ela
desatou a chorar.
Chorou de tristeza, desapontamento, incompreensão?
R.Z. - A explicação, mais tarde, é que o meu irmão, durante anos e anos,
culpabilizava os meus pais. Pensou: "Vamos ter de passar por isto outra
vez." Também estava preocupada por mim. Ser homossexual significava que
nunca ia ter uma relação duradoura, que as outras pessoas fariam troça de mim.
Depois foi à cozinha, o meu pai estava lá sentado e ela sussurrou-lhe do que se
tratava a nossa conversa. Ele respondeu: "Ah, é maricas, também." Em
inglês: "He is a faggot." É uma palavra muito forte, muito
feia. Ouvi um barulho, uma pancada seca. O meu pai tinha desmaiado. Nunca
suspeitara que eu fosse gay.
A.Q. - O Richard jogava basebol.
R.Z. - Como é que um atleta pode ser homossexual? A minha mãe ficou um bocado
histérica. Era uma cena de uma ópera cómica, ou dramática, italiana, não sei.
Hoje rio-me muito.
A.Q. - O que é curioso é que a minha experiência tenha sido, não direi
diametralmente oposta, mas muito diferente.
R.Z. - Mas os teus pais não eram provincianos como os meus. Os teus pais viviam
no mundo real, os meus não.
Era provincianismo ou era a religião?
R.Z. - Não era a religião. A minha mãe celebrava as festas judaicas, mas
era só tradição.
A.Q. - O Richard nem fez o Bar Mitzvah... Nenhum dos nossos pais, com a
excepção da minha mãe, que era protestante, e que ia uma vez por ano à igreja,
tinha algo a ver com religião. Não fui baptizado.
R.Z. - O meu pai era comunista, pensava que a religião era o ópio do povo, tal
como o Marx disse.
A.Q. - Eu ia contar uma coisa importante. O que me surpreendeu não foi ser
atraído fisicamente por homens e por mulheres; foi apaixonar-me por uma pessoa,
o que é diferente. Tenho alguma pena das pessoas que fazem uma separação entre
o emocional e o sexual. (Agora faço essa separação, porque somos essencialmente
monogâmicos, não queremos ter outras relações.) É uma pena ver duas pessoas que
estão muito atraídas uma pela outra espiritualmente e que têm medo de se tocar
para além da festa.
Não se tocam por causa das convenções sociais?
A.Q. - Pois. As mulheres e os homens heterossexuais arranjam gavetas nas
quais não ousam entrar. Muitos deles têm medo de ir explorar isso. Até me
apaixonar pelo Richard, os homens e as mulheres por quem me apaixonei eram
todos heterossexuais. Com todos eles foi possível chegar a um contacto físico e
sexual. Claro que com os homens demorou mais tempo; quando uma pessoa se
identifica como heterossexual, tem uma grande dificuldade em tocar intimamente
outra pessoa [do mesmo sexo].
Freud dizia que potencialmente somos todos bissexuais.
A.Q. - Não sei se somos.
R.Z. - Há pessoas que são totalmente heterossexuais - uma minoria - e há
pessoas totalmente homossexuais - outra minoria. São poucas as que são 50/50.
Sou 90% homossexual. Já tive relações, mas não seria possível manter uma
relação duradoura com uma mulher.
A.Q. - É muito forte em mim esta repulsa pelas camisolas. Pertencer ao Futebol
Clube do Porto ou ser do Benfica, ser católico ou ser protestante. Ou ser de
Joanesburgo, sul-africano, moçambicano. O que é que eu sou? Tenho uma mãe
alemã, um pai açoriano, nasci em Moçambique, vivi na África do Sul muito anos,
estive na Califórnia, estou em Portugal, tenho nacionalidade portuguesa e
americana. Não me faz confusão nenhuma não saber identificar-me.
A maior parte das pessoas precisa do conforto de saber onde pertence.
A.Q. - Não sei se precisam. Acho que estão doutrinadas para achar que
precisam. Vivemos muito em relação à opinião dos outros - como é que nos
identificam, onde é que nos põem, como é que nos consideram? Estes muitos anos
de vida foram uma caminhada a libertar-me disso.
Se perguntasse a cada um dos dois se lhes passou pela cabeça esconder...
A.Q. - Quando era miúdo, sim. Mas felizmente, a partir dos 20 e poucos
anos, não só não escondia, como não tinha orgulho nem vergonha.
Há muitas pessoas que fazem uma vida toda, e quantas casam e constituem
família, escondendo a sua verdadeira orientação sexual.
A.Q. - Não quero ser judgmental, não quero ajuizar se as outras
pessoas fazem bem ou mal. Ter de passar o tempo todo a fingir que se é o que
não se é deve ser doloroso, e não deve servir para nos realizarmos.
R.Z. - Sei que as pessoas têm um contexto de vida e que é difícil, às vezes;
mas viver uma vida não autêntica, sob uma máscara, é uma pena.
Há uma questão subsidiária desta, mas que leva pessoas a esconderem-se: o
"senso comum" critica em alguns homossexuais o gay pride, a
exibição. Por que é que acham que isso ofende tanto?
A.Q. - Não consigo falar pelas outras pessoas, mas conto uma lição de vida
muito grande por que passei. Cheguei a São Francisco em Novembro e passei o
primeiro Natal sem amigos, com a família nos antípodas da Terra. Estava muito
só e sem saber se tinha feito a decisão certa, de me afastar de todo o meu
passado. Fui para um café, e a certa altura aproximou-se um queer,
um travesti bastante exibicionista. Um indivíduo que era homem, que estava
vestido de mulher, todo cheio de pinturas. Senti-me muito incomodado, OK? Ele
perguntou se podia sentar-se à mesa, e eu tive uma reacção muito fria, do
género...
"Não quero ser visto com ele?"
A.Q. - Um pouco. Ele foi muito educado. Estivemos para aí quatro horas a
conversar. Referi-me a mim mesmo como uma espécie de atrasado mental: "Eu
que tenho a mania que sou aberto, como é que posso ter tido esta reacção? Esta
pessoa, a única coisa que queria era companhia, como eu."
R.Z. - Todos os dias vejo jovens a beijarem-se em frente a toda a gente; isso
também é exibicionismo? Se um casal homossexual fizesse isso, toda a gente
ficava horrorizada, mas acontece todos os dias em Lisboa e no Porto e ninguém
diz nada. Há um duplostandard. Sou gay, sou judeu, sou
americano em Portugal. Há a tendência por parte de pessoas liberais,
não-progressistas, de dizer: "Não gosto nada dos judeus, mas gosto de
si." Ou: "Não gosto nada de homossexuais, mas tu és fixe."
Nessas circunstâncias sou o mais judeu, o mais americano e o mais homossexual
possível. Não quero ser aceitável. Quem sou eu para julgar aquele homossexual
efeminado ou aquele judeu religioso, ou aquele americano que só come
hambúrgueres e pizza?
Já tinha estado em público com os dois e nunca vos tinha visto de mão dada.
Isso foi uma coisa sobre a qual falaram, que decidiram fazer ou não em função
do sítio onde estão?
R.Z. - Andávamos de mão dada em São Francisco, mas não muito. Eu sou mais
afectuoso, sou mais táctil. Sou mais como a mãe do Alexandre; éramos iguais.
A.Q. - Andamos muitas vezes de braço dado na rua, quando andamos a passear. As
pessoas aqui no bairro todas nos vêem.
R.Z. - Quando chegámos, era muito mais difícil para ele do que para mim.
O Richard era estrangeiro, o Alexandre era português.
R.Z. - Eu dava aulas na Escola Superior de Jornalismo, mas ele era um
professor catedrático, ia começar um novo instituto, ia ter de pedir dinheiro
de Lisboa [para os projectos científicos do instituto].
A.Q. - Uma vez, na Festa da Árvore no Jardim Botânico, o Richard foi convidado
para estar no júri, para apreciar trabalhos feitos por miúdos de escolas.
Quando cheguei, fui ter com ele e dei-lhe um beijo na cara. Várias pessoas
foram dizer a outras pessoas para me dizerem que tinha de ter cuidado. Até
fiquei espantado. Há tantos homens em Portugal que se beijam. Os amigos antigos
abraçam-se e dão beijos, os pais e os filhos dão beijos. Não havia ninguém no
Porto, desde o reitor até ao ministro, [que não soubesse que são um casal].
Quando veio cá o [Bill] Clinton, o Jorge Sampaio convidou-nos aos dois como
casal.
Passaram 22 anos desde a vossa vinda. O país mudou muito. Isto faz-nos voltar
ao ponto de partida da entrevista, à decisão de se mudarem para cá. O modo como
seriam aceites, enquanto casal, foi uma coisa que também ponderaram?
A.Q. - Perguntei a duas pessoas. Uma pessoa no topo da ordem social, nosso
amigo. A resposta que me deu foi: "Não." Era uma pessoa de esquerda,
não sei se isso afectou. Depois perguntei a uma empregada doméstica que nos
conhecia bem.
Perguntar a uma empregada doméstica era uma forma de ter a reacção do
português comum?
A.Q. - Sim, de uma pessoa que anda de autocarro. A resposta dela foi
fabulosa: "Olhe, professor, temos tanto trabalho que essas coisas não
fazem parte das nossas preocupações." Achei aquilo uma lição ("Você
acha que é assim tão importante, que alguém vai ligar alguma coisa?"). As
pessoas podem fazer alguns comentários, mas também têm dificuldade em ser
agressivos directamente. Nunca senti agressividade nenhuma em Portugal,
nunca.
É também por ser o professor catedrático, por ser alguém que vem de fora?
A.Q. - Talvez.
R.Z. - Fiz 34 sessões de escolas no ano passado, falando da minha escrita, de
ser judeu, de muita coisa. Eles sabem...
A.Q. - Às vezes convidam-nos juntos, eu vou falar de Ciência, ele de
Literatura.
R.Z. - Há dois meses, uma professora disse-me: "Estou preocupada porque o Richard
não falou do Alexandre Quintanilha. Pode falar de qualquer assunto, não temos
preconceitos." Eu disse: "Não falei do Alexandre porque ninguém
perguntou nada sobre isso, mas agradeço na mesma."
Vamos voltar ao começo da vossa história, em 1978. É sempre uma coisa
mágica, no meio de milhões de pessoas, encontrar "a pessoa". Pela
maneira como falam um do outro, parece que perceberam imediatamente que era
"a pessoa".
R.Z. - Eu percebi imediatamente. Ele levou dois ou três dias. Pensava,
talvez, que eu fosse drogado [riso].
Como é que se conheceram?
A.Q. - Num café.
R.Z. - Num café maravilhoso.
A.Q. - Num café maravilhoso em São Francisco, que se chama Café Flore, como o
de Paris. Ia lá ao domingo de manhã tomar um café e comer um muffin.
Estava a conversar, estava a falar de Proust - pretensioso e intelectual! - e
ele apareceu com mais duas pessoas. De repente os nossos olhos cruzaram-se.
Achei-o lindíssimo, porque era e porque é. Eu estava a falar e a pessoa com
quem eu estava levantou-se para ir buscar um café; ele veio ter comigo e
começou a conversar. "Por que é que não vamos?" E eu disse:
"Deixa-me pelo menos acabar a conversa." Acabei a conversa e fomos.
Estivemos uns três dias juntos, sem parar.
R.Z. - Fomos ao meu apartamento, que eu partilhava com duas pessoas. No meu
quarto não havia móveis. Dormia em cima de um colchão de sumaúma que tinha
comprado por cinco dólares. Estava limpo, tinha lençóis, mas eu não tinha
dinheiro nenhum.
A.Q. - A parte mais importante do corpo de uma pessoa é a cara.
Porque a cara diz quem é a pessoa? O que é que vê na cara?
A.Q. - Os olhos, a expressão. Ele tem uns olhos muito expressivos, tem uma
boca muito grande, com um sorriso enorme que lhe enche a cara. Tem este nariz
maravilhoso, enorme. (A primeira mulher por quem me apaixonei era filha de um
casal português/alemão; tinha uns olhos lindíssimos, um nariz muito grande e
uma voz quente. Tinha 35 anos e eu tinha 12 anos.)
O que é que um nariz assim pronunciado representa para si?
A.Q. - Deve significar personalidade, ter as coisas muito vincadas.
O Richard gosta do seu nariz? Ou gosta mais agora porque o Alexandre gosta?
R.Z. - Como qualquer adolescente, faltava-me a confiança de achar que era
bonito. Quase todos os adolescentes passam por essa fase. Teria gostado de ter
a cara do Tyrone Power ou do Randolph Scott [actores americanos] e não tinha.
Levou-me alguns anos a habituar-me à minha cara. Nisso a minha mãe foi muito
importante, disse-me sempre: "És o rapaz mais lindo do mundo." Depois
conheci o Alexandre e ele gostava de mim. Hoje, com 56 anos, estou
completamente à vontade dentro do meu corpo.
A.Q. - Eu nunca estive à vontade dentro do meu corpo. Nunca achei que era
atraente. Sabia que era relativamente inteligente, que tinha capacidade de
sedução. Sei falar, conheço muitas línguas, tenho charme, quando quero, mas
nunca me senti fisicamente atraente. Foram estes 34 anos de vida com ele que me
fizeram sentir mais à vontade no meu corpo. Foi uma aprendizagem. Tinha uns
mitos, [queria ser como] o Paul Newman.
O Alexandre era muito bonito quando tinha 30 anos?
R.Z. - Era e é, e vai continuar a ser. Era diferente de 99,9% dos homens.
Essa coisa de ser bonito não é só uma questão física. É a maneira de ele andar,
a maneira de olhar, de falar. É óbvio que tem qualquer coisa de bonito dentro
dele. Irradia isso na sua cara, principalmente, mas também no corpo. Já vi
homens fisicamente bonitos mas que me metem medo; olho para os seus olhos e não
há nada. Era incapaz, mas mesmo incapaz, de dormir com uma pessoa assim, mesmo
que fosse a pessoa mais bonita do mundo.
Perceberam imediatamente que era "a pessoa". Isso contrariava
desde logo duas gavetas em relação à homossexualidade: a da promiscuidade e a
de as relações serem curtas.
R.Z. - Quando uma pessoa se apaixona por outra, o primeiro ano e meio, ou
dois anos, é de uma energia sexual e espiritual formidável. Vive-se numa
espécie de euforia corporal e sexual. Pensava que gostaria de construir uma
vida com este homem.
A.Q. - Levei mais tempo a perceber que tínhamos de tomar decisões em conjunto.
Quando viemos para Portugal, não foi nada fácil. Eu nunca tinha vivido em
Portugal (tinha cá vindo algumas vezes passar férias), ele muito menos. Quando
nos mudámos, entrávamos num restaurante e o esterco no chão era uma coisa
inacreditável. Nas casas de banho, tínhamos medo de tocar nas maçanetas das
portas. Combinámos que vínhamos por um período de dois anos, e depois
decidíamos se conseguíamos ficar. O choque cultural foi enormíssimo, para ele e
para mim.
A relação podia ter acabado antes da vinda para Portugal, ou não
equacionaram vir um sem o outro?
R.Z. - Isso era impensável. Tínhamos uma união muito forte.
A.Q. - E se ele não tivesse conseguido ficar cá, eu também não ficava. Era
muito claro.
R.Z. - Passámos por fases difíceis na nossa relação, mas mais no princípio.
Porque o pessoal é jovem, não sabe o que quer. São difíceis os primeiros anos
de qualquer relação com pessoas muito jovens, que ainda estão a descobrir a sua
identidade.
Tiveram aquelas discussões em que parece que não há amanhã? Que não
sobrevivem juntos até ao dia seguinte, tal a erosão.
R.Z. - Nunca tivemos isso.
A.Q. - Nunca foi a esse ponto.
R.Z. - Houve alturas em que disse: "Não compreendo este homem! Não
compreendo como ele raciocina, a sua maneira de ser." Eu perguntava:
"O que é que estás a dizer, por que é que estás a dizer isso, qual é a tua
intenção?", e ele respondia: "Não vou falar disso, estás a tentar
mudar a minha maneira de ser, recuso entrar nessa conversa."
As pessoas não querem mudar?
A.Q. - Não querem ser forçadas a analisar-se, a explicar qualquer coisa.
Temos muito a mania de que a outra pessoa está a interferir na nossa
identidade. Vê-se isso muito na maioria dos casais heterossexuais que conheço.
Não falam. O diálogo entre as pessoas é muito pobre. A minha ideia era:
"Não sei muito bem porque é que sou assim, mas também não quero saber,
estou-me nas tintas." That"s
the way I am, take it or leave it.
[Sou como sou, é pegar ou largar.]
R.Z. - Ele era muito dedicado ao trabalho. Tinha 33 anos, queria afirmar-se
como cientista num sítio muito competitivo. Tinha de trabalhar dez horas por
dia durante seis ou sete dias por semana para conseguir o que queria. Eu podia
ter compreendido tudo isso, mas ele recusou explicar.
Porquê essa competitividade e desejo de vencer?
A.Q. - Saí de Moçambique para a África do Sul, uma cultura nova, e tive de
sobreviver. Depois saí dali e fui para outra cultura completamente nova.
Sobreviver num sentido amplo, não num sentido económico.
A.Q. - Em Joanesburgo os meus pais ainda me ajudaram, mas a partir do 4.º
ano da faculdade, antes de começar o doutoramento, já não tinham possibilidade.
Não podia sair dinheiro de Moçambique, era a Guerra Colonial. Tive de arranjar
um lugar como assistente de laboratório em Joanesburgo para me sustentar. E,
quando fui para Berkeley, levei dois mil dólares para sobreviver uns meses até
arranjar trabalho. Estava muito preocupado com esta questão da sobrevivência
física, económica, intelectual e científica.
Insisto na longevidade da vossa relação, depois da turbulência dos primeiros
anos. O mais difícil numa relação, independentemente da orientação sexual dos
cônjuges, é estarem tanto tempo juntos e bem. Por isso as pessoas perguntam:
"Qual é o segredo?"
R.Z. - Temos um bocadinho de sorte, e foi um bocadinho de trabalho. Em
qualquer relação que é um verdadeiro casamento (e há casamentos que não são
casamentos, são duas pessoas a viver juntas), existe a pessoa A, a pessoa B e o
casamento. Há três seres vivos numa relação e tem de se ter muito cuidado com o
terceiro ser vivo: o próprio casamento. Tem de se valorizar, polir, prestar
atenção, senão a relação vai acabar. Os dois estamos muito conscientes disso.
Apaixonarmo-nos por uma pessoa é muito fácil (com algumas pessoas que conheço,
acontece de duas em duas semanas). Mas é preciso aprender a respeitar o outro.
Para o Alexandre, era mais natural, tinha dois pais muito respeitosos. Eu não
tinha isso. Os meus pais diziam coisas um ao outro que eu não diria ao inimigo
mais feio do mundo, coisas reles. Apaixonar-me por ele era superfácil, mas
respeitar a sua opinião, a sua maneira de ser, as coisas que ele dizia e com as
quais não concordava, as coisas que ele fez e que não compreendi, levou-me
anos.
A.Q. - Não acredito que haja relações duradouras se cada uma das pessoas não
tem a sua própria vida construída. Quando o Richard está a escrever (já sei,
porque escreveu vários livros), está de tal maneira obcecado com a escrita que
eu sou uma espécie de audiência. E quando estou muito ocupado e ando muito
cansado, ele sabe que estou a fazer qualquer coisa que para mim é importante.
Nessas alturas, temos muito respeito para não exigir mais do outro. Isto
aprende-se. Quando a pessoa começa a sentir uma verdadeira realização pessoal
com a realização do outro, quando deixa de haver aquela necessidade egocêntrica
- "preciso que me dês mais atenção porque estou inseguro" -, isso é
que é uma relação conseguida.
É natural que tenha havido, sobretudo nos primeiros anos, estatutos
desiguais. Nem que seja porque existe uma diferença de onze anos entre os dois.
O que é que o Richard fazia nos Estados Unidos? A sua formação é Religiões
Comparadas.
R.Z. - Mudei para São Francisco e fiz muita coisa. Era um busboy,
limpava as mesas num restaurante e era estafeta. Depois comecei a trabalhar
como secretário. Aos 26 anos, voltei para a escola, para tirar um mestrado em
Jornalismo na Stanford. Mas é verdade, tínhamos patamares diferentes. Eu
trabalhava como empregado de mesa e ele não olhava para mim como uma pessoa de
menor importância.
Era também esse tempo e esse país. Em Portugal, a estratificação social era
(e é ainda) mais vincada. Não imagino que um professor da Universidade do Porto
vivesse com uma mulher que serve à mesa.
A.Q. - Pois.
R.Z. - Mas ele era de Moçambique, com um pai açoriano e uma mãe alemã, muito
influenciado pela África do Sul e pelos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, não
se avalia uma pessoa pelo seu trabalho. Um carpinteiro maravilhoso pode ler
Proust e Stendhal. Não temos essa ligação directa entre o que uma pessoa faz e
a sua capacidade intelectual ou espiritual, ou a sua sensibilidade. Eu não
podia ter mantido uma relação com uma pessoa que pensava menos de mim por ser
empregado de mesa.
Foi em Portugal que começou a sua carreira de escritor. No fundo, foi uma
outra vida que começou aqui também.
R.Z. - Já tinha escrito muito jornalismo, e tinha escrito 20 e tal contos,
e publicado uma dúzia deles em revistas americanas. Chego a Portugal com a
ideia para O Último Cabalista de Lisboa. Em Berkeley fui com o
cartão do Alexandre à biblioteca tirar livros sobre Portugal, Espanha, século
XVI, casas, filosofias, roupa. Continuei a pesquisar aqui e a mergulhar-me na
história portuguesa e no meu romance. Em parte, era a minha maneira, indirecta,
de me adaptar a Portugal, e de valorizar Portugal, a história portuguesa.
Como é que foi a sua inserção? Quais foram as grandes dificuldades?
R.Z. - Cheguei aqui desorientado. O meu irmão tinha morrido em Maio de
1989, o meu pai faleceu em Junho de 1990. Na América, temos outra maneira de
lidar com a amizade. Somos mais informais, falamos de tudo, logo. Um americano,
cinco minutos depois de a conhecer, já está a falar do divórcio e do herpes.
Mas o português, em 1990, era ao contrário. Falava de filosofia, de arte, do
tempo, de tudo menos da vida pessoal. Eu não consigo estabelecer uma relação
duradoura e profunda de amizade sem ter a possibilidade de falar da minha vida
íntima, medos, dúvidas, problemas.
Sem falar sobre aquilo que verdadeiramente lhe interessava.
A.Q. - Os portugueses chegam a fazer isso, às vezes, depois de uma relação
duradoura. Mas Portugal nos últimos anos mudou de uma forma extraordinária, e
acompanhar isso foi muito interessante. (Uma das coisas que mais me
impressionaram foi o empowerment das mulheres. O 25 de Abril
teve um impacto muito maior nas mulheres do que teve nos homens. Elas estavam
mais reprimidas. E ver a mudança dramática que houve no investimento na
ciência, na educação, que afectava jovens que estavam ao pé de nós - ele também
esteve uns anos a ensinar -, foi muito excitante.)
Estiveram para regressar aos Estados Unidos em algum momento?
A.Q. - Estivemos. O director da divisão onde trabalhava veio cá várias
vezes e de cada vez perguntava-me se não queria voltar. Estávamos neste choque
cultural e a tentação de voltar era enorme.
R.Z. - Ele chegou com grandes projectos. Um deles era criar o que viria a ser o
Instituto de Biologia Molecular. Além de todos os problemas [decorrentes] de
criar um centro de investigação com centenas de cientistas, havia pessoas que
queriam que falhasse. Portugal é um país muito pequeno, com muitas rivalidades,
muita mesquinhez. Desculpe dizer, mas todos sabemos isso.
Já pode dizer porque já é português. Nós, portugueses, não gostamos que os
de fora digam mal de nós, mas dizemos o pior possível de nós mesmos.
R.Z. - Estas coisas também existem no Estados Unidos. Mas lá, como é um
país muitíssimo maior, é possível fazer uma outra vida num outro lugar.
A.Q. - Eu não sabia como é que funcionavam as coisas. Recusava-me a fazer
telefonemas a pedir favores. Em Portugal, as coisas eram assim. Não quero que
fique com a ideia de que as rivalidades foram muito grandes. Havia uma ou outra
pessoa que não gostava de mim. Também tive muita ajuda, muita gente que achou
que este projecto valia a pena, que deu muito apoio. Tive apoio de Lisboa para
desenvolver um novo instituto, e depois para fundir este com outro, o Instituto
de Engenharia Biomédica, para construir um laboratório novo.
Ao longo destes anos, pensaram em casar?
R.Z. - Estamos casados há dois anos e um mês. Antes não era possível.
Nos Estados Unidos também não era possível?
A.Q. - Passou a ser possível nos últimos dez, 15 anos [em alguns estados].
Demos passos pequeninos. Há 30 anos que temos testamentos, que fizemos nos
Estados Unidos, dizendo que tudo o que é meu é dele e que tudo o que é dele é
para mim, se algum de nós falecer.
R.Z. - Quando a sida começou, o cônjuge do doente não podia visitá-lo porque
não estavam casados. Não tinha direito porque não fazia parte da família.
Queríamos evitar isso e tomámos medidas.
A.Q. - Outra coisa que também fizemos muito cedo foi o testamento vital, que já
existia lá, a exigir que o médico não tomasse medidas suplementares para manter
a pessoa viva. O casamento, para mim, nunca teve um significado muito grande,
nem simbólico nem pessoal. Tem um significado muito grande, sim, em termos de
direitos e deveres das duas pessoas. Mas quando casámos, como eu tinha mais de
60 anos, o casamento teve de ser com separação de bens. Casámos com separação
de bens e temos um testamento escrito num notário português.
R.Z. - Está tudo nos dois nomes, as casas, o dinheiro, para ser mais seguro.
Como foi o casamento?
A.Q. - Convidámos um número muito pequeno de pessoas, que são muito
íntimas. Ficaram muito emocionadas, foi o primeiro casamento gay em
que estiveram. E o notário trouxe-nos um presente de casamento, um disco de
música sefardita galega. Uma coisa lindíssima.
R.Z. - Ele tinha pesquisado os dois na Internet e sabia que eu tinha escrito
sobre assuntos judeus.
A.Q. - Quando nos mandou o certificado, mandou uma carta em que nos agradecia
por lhe termos dado a oportunidade de realizar esta cerimónia pela primeira vez
na vida. Fiquei muito comovido. Às vezes fico surpreendido. Entro num avião e
vem uma hospedeira dizer-me que tenho de dizer ao Richard que ela gostou imenso
do último livro dele. Há aqui uma espécie de - não sei como é que se diz em
português... - conluio: as pessoas acham que isto é especial.
Também sente isso?
R.Z. - Posso estar nos sítios mais pequenos de Portugal, aldeias pequenas,
e as pessoas vêm ter comigo, agradecem os livros e mandam beijinhos para o
Alexandre. É uma grande boa vontade por parte de muita gente.
A.Q. - Não estou nada convencido de que os preconceitos desapareceram. Mas já
começa a haver, em muitos casos, uma certa vergonha dos preconceitos.
Por que é que para si foi importante casar?
R.Z. - Simbolismo. Ainda há sítios no mundo em que ser homossexual pode ser
punido com sentença de morte, com penas de dez anos, ou mais, de prisão. Para
mim, como escritor, como ser humano, o facto de ser um crime exprimir o que é
melhor dentro de nós, a afeição, a paixão, a solidariedade e a amizade, é
inconcebivelmente injusto. É muito importante reivindicarmos os nossos direitos
no Ocidente, para que um jovem que tenha acesso à Internet no Burkina Faso, na
Nigéria ou na Birmânia, possa ir ao site do PÚBLICO em
Portugal [e ler esta entrevista].
É também por isso que dão a entrevista?
R.Z. - Claro que sim. Vivi num mundo em que não era possível as pessoas das
pequenas aldeias dos Estados Unidos assumirem-se. E em Portugal talvez ainda
não seja possível em aldeias do interior. Falo disto para que aquela jovem
lésbica de Castelo Branco, ou o jovem transexual de Fafe possam olhar para mim
e para o Alexandre e descobrir: "Não tenho de mudar para ser aceite. Posso
ser como sou. Tenho os mesmos direitos dos outros. Não há cidadãos de segunda
em Portugal."
A.Q. - Pensei muito sobre se devia dar esta entrevista ou não, porque não tenho
de explicar rigorosamente nada. As pessoas são aquilo que fazem e aquilo que
são, e não aquilo que dizem. Há uma pequenina coisa que é muito importante: a
questão dos role models. A grande diferença entre um casal
heterossexual e homossexual, para já - no futuro não vai ser assim - é que os
casais heterossexuais têm filhos, têm netos. No nosso caso, como não temos
filhos (já pensámos adoptar, volta e meia, mas não foi uma coisa muito
premente), essas relações têm de ser substituídas por outras. Temos de inventar
outras partes da nossa relação que sejam alternativas a essas. Temos de nos
reinventar e dar a noção a outros gays de que isso é possível,
realizável. É preciso que o mundo à nossa volta perceba que não me acho
especial, positiva ou negativamente, por ser assim. Tive muita sorte em
encontrar uma pessoa como o Richard, tive muita sorte em ter os pais que tive,
em viver nos sítios onde vivi, apesar de às vezes me sentir muito só e de ter
momentos muito difíceis de afirmação pessoal. Isso também é uma história que
vale a pena divulgar. Numa sociedade que está cada vez mais competitiva, é
importante as pessoas falarem daquilo que não é competição selvagem. É a
partilha, é sentirmos - isto parece uma treta... - que o mundo, se tivermos boa
vontade e se funcionarmos de boa-fé, vale a pena.
Que vida fazem na vossa casa de fim-de-semana, em Cristelo?
A.Q. - Muito desse tempo passamos no jardim, a cavar, a cortar, a plantar.
Vamos para o jardim (é grande, estamos em sítios diferentes), encontramo-nos à
hora do almoço, estamos juntos, depois vamos outra vez para o jardim.
R.Z. - Tenho uma vantagem: trabalho em casa e só faço o que quero. Aos 56 anos
consegui isso. Cada vez mais recuso sessões, promoções, porque estou muito bem
comigo, estou muito bem com o Alexandre, estou muito bem em casa. Adoro
escrever, adoro fazer jardinagem. Por que é que vou interromper isso?
A.Q. - Há quatro anos, decidimos que todos os anos passamos cinco semanas a
viajar nas montanhas dos Estados Unidos.
É quando encarna o personagem Clem?
R.Z. - Alexandre não é um nome [que vá bem com aquela paisagem]. Chamo-lhe
Clem, como Clemente, e falo com sotaque do west. [riso]
A.Q. - Very entertaining. [riso] Não levamos telemóveis nem
computadores. Estou a descobrir uma América que não conhecia. Tinha aquele
snobismo de que em África era tudo mais bonito, mais selvagem, e que ir para o
meio dos Estados Unidos só para ver campos de trigo e de milho não me
interessava nada. As montanhas são lindíssimas.
Fazem as cinco semanas de seguida?
A.Q. - Não. Eu preciso de Nova Iorque, mais do que ele. Preciso de lá estar
uns dez dias todos os anos. Fazemos cinco dias em Nova Iorque, depois vamos
para um sítio qualquer. A última vez estivemos em Denver, alugámos um carro e
fomos passear pelas montanhas. Ficamos em motéis. Parar o carro à porta do
quarto é uma maravilha, lembra-me a África do Sul. As pessoas não são
sofisticadas, mas são muito genuínas. Nunca falamos de sexualidade ou religião,
mas falamos de tudo o resto, de arte, de música, de Portugal. Os americanos em
geral são amigáveis e informais.
Isso também vos faz perceber que para essa América não poderiam voltar,
nessa não poderiam viver.
R.Z. - Não sei.
A.Q. - Daqui a dois anos tenho 70 anos, tenho de me reformar. Uma das coisas
que andamos a discutir é se vamos passar períodos de dois meses, duas vezes por
ano, nos Estados Unidos. A mim falta-me... O Richard às vezes goza comigo
porque tenho de ir aos supermercados onde ia.
R.Z. - É muito sentimental! Gosta de ir às lojas onde a minha mãe andava.
A.Q. - Vou aos supermercados onde íamos fazer compras. Às vezes, ela vinha
connosco. Tenho um gosto enorme em ir aos supermercados, com o mesmo cheiro.
Chegar lá assim ao género do Proust, que comia a madalena [e recuperava a sua
infância]. A minha madalena são os supermercados! [riso].
R.Z. - É do género do Pingo Doce, muito pouco interessante.
É muito pouco Proust.
A.Q. - Mas cada um tem o Proust que merece!
Retomo a questão: seria possível viverem nessa América profunda e viverem aí
abertamente a vossa homossexualidade?
R.Z. - Sim. O bairro em que vivia quando conheci o Alexandre, o Castro, é
um bairro residencial, simpático. Quando estive lá no fim dos anos 70, a
maioria das pessoas eram jovens que vinham de Tallahassee, da Florida, de
Atlanta, de Denver, que iam para São Francisco encontrar a felicidade. Hoje, o
Castro é um sítio de homens com mais de 55 anos.
A.Q. - São os que ficaram.
R.Z. - Os jovens que hoje em dia vivem em Tallahassee, em Albany, em Bufallo,
em Cleveland, não têm de ir para Nova Iorque ou São Francisco. Podem permanecer
na sua cidade e ter uma vida realizada, abertamente homossexual. Isso é uma
mudança muito grande nos Estados Unidos.
É recente?
R.Z. - É dos últimos dez anos. Em parte, é um efeito da televisão, de
programas como Will & Grace. Apesar de ser um país de religião
fundamentalista, nas cidades, para pessoas entre os 18 e os 35 anos, ser
homossexual é um não assunto, independentemente de se ser republicano ou
democrata, conservador ou progressista.
A.Q. - As séries televisivas tiveram um impacto enorme sobre isso. Da mesma
maneira que as séries brasileiras, quando chegaram a Portugal, tiveram um
impacto enorme na forma de pensar.
R.Z. - Na Europa, ter um presidente da câmara de Paris ou de Berlim,
abertamente homossexual, muda tudo. Agora há pessoas com cargos de respeito que
são homossexuais e que têm uma vida como qualquer um. Ele não dá ordens gay para
limpar as ruas, ele dá ordens como presidente da câmara. Quando escrevo um
livro, não escrevo um livro homossexual, estou a escrever um romance. Estes
rótulos vão deixar de existir. Estamos a lutar por isso.
A aprovação do casamento gay em Portugal foi um passo de gigante
para que isto deixe de ser um assunto?
A.Q. - Sim. Ter sido aprovado e ter tido pouca contestação, o que é uma
coisa muito interessante.
R.Z. - Toda aquela gente que previa o fim do mundo...
A.Q. - Só daqui a vários anos vamos perceber o impacto. Uma das razões pelas
quais tive dúvidas sobre dar esta entrevista foi porque já quase deixou de ser
um assunto em Portugal. Tinha medo que as pessoas pensassem que estava a fazer
a apologia de qualquer coisa, ou que havia a necessidade de falar sobre um
assunto.
R.Z. - É um risco. Não quero ser conhecido como um escritor gay,
como também não quero ser conhecido como escritor judeu, ou escritor americano.
Quero ser conhecido como um bom escritor. Decidi correr esse risco. Os
benefícios para a tal jovem de Castelo Branco e para o jovem de Fafe são mais
importantes. Há pessoas que estão a sofrer imenso no mundo simplesmente por
amarem uma pessoa do mesmo sexo.
Falam inglês um com o outro e esta entrevista foi em português. Teria sido
diferente se fosse em inglês?
A.Q. - Provavelmente. Usei muitas palavras inglesas. Como é que seria
diferente? Não sei.
R.Z. - Talvez eu brincasse mais. O meu vocabulário é maior em inglês. As nuances da
linguagem, consigo medi-las de uma forma diferente. Não me custa nada falar
português. Gosto de ser português. Sou uma pessoa muito mais rica, muito mais
confiante, mais capaz de escrever excelentes livros - espero eu - por ter esta
experiência de viver há 22 anos em Portugal. E também por ter mantido uma
relação de 34 anos com o Alexandre. Não sou a mesma pessoa que escreveu O
Último Cabalista de Lisboa. Essa pessoa já não existe, felizmente. Uma
pessoa que não evolui é um ser morto.
Querem dizer mais alguma coisa ou ficamos por aqui?
R.Z. - Estávamos a falar das razões pelas quais era possível manter uma
relação durante tanto tempo e só queria acrescentar que o Alexandre é o meu
melhor amigo. Não posso imaginar viver 34 anos com uma pessoa que não fosse o
meu mais profundo e mais importante amigo. Adoro passar dias inteiros com ele.
Preciso de passar muito tempo sozinho, mas posso passar esse tempo com ele. Eu
sozinho ou eu com ele é a mesma coisa. Ele esteve doente, há cinco anos, com
pneumonia, e teve de ficar em casa três meses. Estava deitado e eu, como
Florence Nightingale, ou Dr. House, estava aqui todos os dias. Era como uma
lua-de-mel. Passava 24 horas por dia com ele, e era espectacular. Não há nada
que não lhe possa dizer, não sinto qualquer limitação.
A.Q. - Queria dizer duas coisas. A primeira é que votei no Obama muito antes de
ele dizer que estava de acordo com o casamento homossexual. E voltei a votar
este ano. Espero que ganhe. [A entrevista foi realizada antes das eleições.]
Estou com muito receio. O Mitt Romney é muito mais perigoso do que dá a
entender. Como é mais inteligente que o George W. Bush, é capaz de ser muito
mais perigoso do que ele. A outra questão: estou muito preocupado com o
crescimento da iniquidade em Portugal.
É um país muito mais iníquo, agora?
A.Q. - Sim. É das coisas mais graves que vi nestes últimos 20 anos. É
criminoso que nestas propostas [do Orçamento do Estado] o aumento dos impostos
dos mais ricos seja em percentagens mais baixas que o dos mais pobres. Os pais
do Richard viveram o tempo do Roosevelt, que criou trabalho depois da Grande
Depressão, o New Deal. Gostaria muito que houvesse um New
Deal em Portugal. Os que têm mais deviam contribuir mais, os que têm
menos deviam contribuir menos. São os dois grandes dilemas nesta altura, a
iniquidade e os miúdos a sentir que não têm escolhas, que a única escolha é ir
lá para fora. A consequência disso sobre a saúde mental dos portugueses vai ser
muito séria. Já não tínhamos uma saúde mental muito boa [riso]."