"Dia 10 de Novembro de 1961, sexta-feira. O Super-constellation da TAP Mouzinho de Albuquerque descola à tabela do Aeroporto de Casablanca, em Marrocos. Eram 09h15. O comandante José Marcelino e o co-piloto Raul Teles Grilo ganham altitude, alinham o avião na rota para Lisboa e permitem aos passageiros desapertar os cintos e acender os cigarros. Estava bom tempo. A viagem, de cerca de hora e meia, prometia ser calma. Mal sabia a tripulação que entre os 18 passageiros seguiam seis guerrilheiros, inimigos jurados do regime, chefiados por Palma Inácio. A calma a bordo foi interrompida mal à meia hora de voo. Hermínio da Palma Inácio entra de surpresa pela cabina de pilotagem – e aponta o revólver à cabeça do comandante: “Isto é uma acção revolucionária. Não quero fazer mal a ninguém” – diz. Nunca, na história da aviação comercial, um avião fora tomado no ar. O plano dos revolucionários é arriscado: pretendem seguir na rota para Lisboa, simular a aterragem na Portela e voltar para trás, em voo rasante sobre a capital, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro, para lançarem 100 mil panfletos com apelos à revolta popular contra a ditadura. Aterravam sãos e salvos em Tânger – onde Palma Inácio e companheiros esperavam asilo político. O co-piloto Teles Grilo, o mecânico-chefe António Coragem, o mecânico de voo Alberto Coelho não disseram palavra. Apenas o comandante Marcelino, ameaçado pelo revólver, tentou com serenidade demover o guerrilheiro. Disse que o avião não tinha combustível para regressar a Tânger. Mas Palma Inácio, que era mecânico de aviões e tirara nos Estados Unidos a licença de piloto de linha aérea, estava seguro do que fazia. Exigiu os registos de voo do Super-constellation – e verificou que os tanques tinham sido atestados em Casablanca. Havia gasolina à farta. O comandante tentou outro truque: “Como é que vai lançar os papéis? Eu não posso abrir as janelas do avião” – disse José Marcelino. A resposta de Palma calou-o: “Pode, pode. Voa o mais baixo possível, despressuriza as cabinas e abrimos as janelas de emergência.” Palma Inácio tinha a situação dominada. Lá atrás, a aventura também não podia correr melhor. Os outros cinco revolucionários nem sequer foram obrigados a levantar a voz e a mostrar as armas. O comissário de bordo Orloff Esteves e as duas assistentes, Maria del Pilar e Luísa Infante, aceitaram participar naquele momento histórico – e até ajudaram a lançar os panfletos. Nem todos os 13 pasageiros (americanos, espanhóis, belgas e dois portugueses) compreenderam que o avião fora tomado de assalto: só ficaram a saber depois da aterragem em Tânger. A cerca de meia hora de Lisboa, momentos antes de iniciar os procedimentos de descida, o comandante Marcelino contacta a torre de controlo – e recebe autorização para aterrar na pista 05. Faz a aproximação – mas, no último momento, acelera os quatro motores a hélice: o avião ‘borrega’ sobre a pista, ganha altura e afasta-se do aeroporto. José Marcelino volta a comunicar com a torre – e tenta explicar ao controlador, por meias palavras, que a bordo o obrigam a fazer um voo rasante sobre Lisboa e outras cidades a sul. “Repita lá?” – dizem-lhe da torre. A comunicação é interrompida pela voz de um general da Força Aérea, Costa Macedo – que pilotava um monomotor, percebeu tudo e deu o alerta. Minutos depois, dois caças F-84 levantam voo da Base de Monte Real: descolam com ordens para abaterem o avião da TAP caso não conseguissem obrigá-lo a aterrar em solo português. O Super-constellation iniciou então um perigoso jogo do gato e do rato. O avião teria de voar baixo, a escassos 100 metros de altura, para fugir aos radares e iludir os caças. A manobra era perigosa, só ao alcance de pilotos de elite. Os seis revolucionários tinham levado 100 mil panfletos, impressos em fino papel de seda, na bagagem de mão. O avião passou a rasar a estátua do Marquês de Pombal, sobrevoa a Baixa, guina sob Alcântara. Uma chuva de papéis cai sobre Lisboa – o mesmo no Barreiro, Setúbal, Beja, Faro. Cem mil panfletos voaram das janelas do avião. A missão estava cumprida. O Super-constellation, como estava previsto, aterrou no Aeroporto de Tânger, em Marrocos, às 12h50 de 10 de Novembro, sexta-feira. A operação mereceu honras da Imprensa internacional – era o que os revolucionários pretendiam. Salazar espumou de raiva.
Este texto foi transcrito do primeiro volume de uma pequena colecção de livros intitulada “As Grandes Operações da Guerra Colonial”, que está a acompanhar o Correio da Manhã todas as quintas feiras, mas que pode ser adquirida sem o jornal (começou a 8 de Julho e termina a 9 de Setembro).
E embora no texto, tal não venha referido, esta operação, a que foi dada o nome de “Operação Vagô”, foi planeada por Henrique Galvão.
Recordações dos tempos heróicos!!
ResponderEliminarObrigada, Pinguim , e bom fim de semana:))
Justine
ResponderEliminarse muitos, aliás quase todos, desconhecem estes factos da luta de muitos anos contra o regime de Salazar, imagina as gerações mais novas que talvez fiquem surpreendidas com actos desta natureza.
Beijinho.
Conhecia este facto, mas não estava a par dos detalhes.
ResponderEliminarRealmente foi uma operação genial, que com certeza deve ter feito muita mossa no amor-próprio do regime...
Maldonado
ResponderEliminarfez com certeza, embora sem o impacto internacional daquela outra que foi o assalto ao paquete Santa Maria.
Palma Inácio era um executante muito eficaz e Henrique Galvão um estratega em planos audaciosos que pusessem o regime em xeque.
Abraço amigo.
Meu querido, este post foi realmente interesantíssimo!!!!!!!! ADOREI!!!!!!!!!!
ResponderEliminarOlá Ricardo
ResponderEliminarimagino que, como brasileiro, não conheças certos acontecimentos que ocorreram aqui em Portugal no tempo da ditadura de Salazar.
Fico bem satisfeito de ter contribuído para ter levado este ao teu conhecimento.
Beijo.
Amigo João
ResponderEliminarNão conhecia estes detalhes da operação, que foi um golpe muito forte no regime fascista, tendo chamado as atenções de todo o mundo para a existência de uma ditadura que se fingia de morta, numa política do "orgulhosamente sós".
Tive muitos anos após o 25 de Abril a oportunidade de conhecer pessoalmente Palma Inácio e estar algumas vezes á conversa com ele, era um homem bom, extremamente cortês e generoso. Foi um previlégio para mim conhecer o exemplo de cidadania que ele dava permanentemente no seu dia-a-dia!
Um Post mágnifico João.
Muito obrigado!
Um abraço.
Luís
Luís
ResponderEliminarimagino o que terás sentido ao dialogar com o Palma Inácio, que foi um dos grandes exemplos da resistência ao regime fascista de Salazar.
Os pormenores da operação estão aqui muito bem expostos e é interessante o encontro de Palma Inácio com o comandante do avião, 45 anos depois.
Abraço grande.
Estamos numa de recordações? A mim fazem-me bem e não me tornam saudosista, tornam-me feliz e orgulhosa, por ter "vivido" toda essa época em que parece que as gentes não estavam tão amorfas como na actualidasde.
ResponderEliminarAbracinho
Maria Teresa
ResponderEliminarnão é só recordar, é também ficar a conhecer melhor, mais ao pormenor, e sobretudo, divulgar.
Estou absolutamente certo que a quase totalidade dos leitores deste blog não conheciam, nunca tinham ouvido falar disto; e é importante que o saibam, que conheçam bocadinhos de uma página muito importante da vida portuguesa da segunda metade do século XX e que foi a RESISTÊNCIA!
Sei que muitos nem sequer vão ler, o que é pena, poucos ou quase nenhum vai comentar, mas basta que alguém fique a saber isto para me satisfazer.
É muito curioso que os comentários até agora existentes sejam de pessoas com uma idade que abrange este período, ou com formação cultural mais aprofundada sobre estes assuntos.
Ainda não apareceu ninguém, jovem, que dissesse qualquer coisa assim: "nunca tinha ouvido falar, mas gostei", ou mesmo criticando...
Bejinho.
conheço várias histórias de resistência, mas de facto não preciso de estar a mentir: nunca tinha ouvido falar deste episódio. parece-me exemplar de como era organizado e de como as pessoas eram envolvidas e participavam.
ResponderEliminarnão sei até que ponto fez mossa, mas deve ter irritado muito fascista!
abraço
Ainda eu estava bem longe de ver a luz dos dia. Esses senhores já nessa altura tinham muita artimanha e sem grandes tecnologias conseguiam atingir os seus objectivos e instigar a tão necessitada revolução. Cheira-me que devem ser livros que há muito adicionaste às tuas leituras.
ResponderEliminarPS: Mais uma vez obrigado pelo delicioso jantar e pelo serão que nos proporcionaste. Um grande abraço amigo pinguim.
Paulo
ResponderEliminareu recordo-me vagamente e claro que fez mossa, embora os objectivos iniciais não tivessem sido alcançados.
Abraço amigo.
André
ResponderEliminarnão, este texto até chegou às minhas mãos há muito pouco tempo; andam a sair uns cadernos sobre operações da guerra colonial, semanalmente, no Correio da Manhã e como compro tudo o que tem a ver com a guerra colonial ando a coleccioná-los; junto à descrição dessas operações vêm pequenos apontamentos de factos que se passaram na altura, não no teatro de operações, mas aqui em Portugal continental; e foi assim que descobri o texto, embora me recorde deste episódio na altura.
o prazer de vos ter tido aqui a jantar foi todo meu, amigos. Espero que não tenha sido a última vez.
Abraços grandes.
Não conhecia este episódio. Estamos sempre a aprender. E que interessante é a nossa História, cheia destes episódios que a tornam tão rica.
ResponderEliminarObrigado mais uma vez pela partilha.
Abraço.
Miguel
ResponderEliminarcomo afirmei no comentário à Maria Teresa, já imaginava que houvesse um desconhecimento bastante generalizado sobre este caso, não só por já ter passado tanto tempo, mas também por estas situações serem sempre muito "abafadas" nas notícias da época e depois não houve grande interesse (o que é pena) de compilar todos estes episódios da resistência ao salazarismo.
Assim, esta divulgação, para mim, é um prazer mas mais que tudo um dever.
Abraço grande.
Não conhecia esta ocorrência, por isso ainda bem que aqui nos deixaste este post tão interessante. Aqui aprende-se sempre alguma coisa ;D
ResponderEliminarÉ bom ler sobre os bravos desta terra, tantas vezes achamos que somos uma cambada de bananas, e a história tem mil maneiras de nos provar o contrário.
Obrigada João
Beijinho
Meldevespas
ResponderEliminare quantas histórias menos conhecidas ou com protagonistas anónimos ficaram por contar?
É bom saber que houve gente generosa que foi abrindo caminho ao que depois resultou no 25 de Abril.
Beijinho.
Olá caro Pinguim,
ResponderEliminarque engraçado, estou a fazer esta colecção!!
Espero que esteja tudo bem consigo.
Abraço grande e doce
Com carinho
Sairaf
Sairaf
ResponderEliminaragora fiquei curioso; será que tens família que fez a guerra colonial ou apenas um legítimo interesse em saber como se passaram as coisas por lá?
Beijinho.
Pinguim tive um tio que foi à guerra colonial, de lá trouxe várias sequelas, não fala sobre o assunto, a minha mãe diz que ele mudou muito desde que regressou de lá, isola-se do mundo, vive em sobressalto com o que o rodeia e é claro que a minha curiosidade também contou para comprar os ditos livros.
ResponderEliminarConfesso que tenho alguma curiosidade em conhecer uma terra tão quente e que tanto poderia dar, mas que em vez disso anda um pouco abandonada.
Abraço quente e doce
Com carinho
Sairaf
Sairaf
ResponderEliminareu estive na Guiné, primeiro, como alferes, durante quatro meses, a estagiar, e depois de frequentar o curso de capitães milicianos fui colocado em Moçambique, como comandante de companhia, durante 27 meses.
Fiz uma pequena safa aqui no blog sobre esse tempo a que dei o nome de "A tropa cá do João", que comecei a publicar ainda na parte primeira do blog, mas que consegui recuperar à excepção de um episódio. Se tiveres interesse, e caso ainda não tenhas lido podes encontrar essas crónicas nuns links que te vou enviar por mail.
Beijinho.
Achei-o muito mas mesmo muito interessante! Gostei!
ResponderEliminarBeijinhos
Martinha
ResponderEliminarmuito obrigado por essa tua opinião; é por essa razão que vale a pena continuar na blogosfera.
Beijinho.
Gostei tanto de quando estive a estudar o Estado Novo, que a professora tivesse mencionado isto :)
ResponderEliminarSei lá, um bocadinho de rebeldia nunca fez mal a ninguém, principalmente quando envolve liberdades...
Olá Filipa
ResponderEliminardeste-me uma agradável novidade; desconheço os currículos das novas disciplinas e assim fiquei a saber que "estas coisas" também são objecto de estudo para se ficar com uma noção perfeita da situação política de então.
Obrigado.
Abraço amigo.