quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
Um autor, uma obra , uma carta
Armistead Maupin é um escritor americano, homossexual e residente na cidade de São Francisco.
É o autor de uma série de crónicas que depois reuniu em variados livros, baseados na vida desta cidade californiana, de alguns dos seus habitantes dos dois sexos, cujas vidas se entrelaçam num imenso painel do que é “viver" em São Francisco…
Mais tarde, estas crónicas deram origem a uma série televisiva de grande aceitação, cujo nome é “Tales of The City”.
Estou a ler cronologicamente estes livros, tendo devorado os dois primeiros: “Histórias de São Francisco” e “Mais Histórias de São Francisco”, estando agora a iniciar a leitura do terceiro, de seu nome “Novas Histórias de São Francisco.
O núcleo principal das personagens é sempre o mesmo e habita um velho prédio da cidade, cuja proprietária é a figura central, Ana Madrigal (que na série televisiva é magnificamente interpretada por Olympia Dukakis)
Uma das principais personagens é um homossexual, Michael Tolliver, que embora vivendo na cidade californiana, é natural de Orlando, onde vivem os seus conservadores pais, que são perfeitamente homofóbicos e defendem as ideias da então grande inimiga dos gays, contra os quais fez uma autêntica cruzada, Anita Bryant (de quem a Isilda Pegado pretendeu ser um clone cá do burgo).
Claro que os pais de Michael não sonham sequer a orientação sexual do filho, até que ele resolve escrever uma carta à mãe, em que faz o seu “coming out”; por ser um trecho excepcional aqui o transcrevo:
“Querida Mamã
Desculpa ter demorado tanto tempo a escrever-vos. De cada vez que tento, vejo que não digo as coisas que me vão no coração. Não fazia mal se vos amasse menos do que amo, mas vocês ainda são meus pais e eu ainda sou vosso filho.
Tenho amigos que acham que sou louco, ao escrever-vos esta carta. Espero que estejam enganados. Espero que as suas dúvidas tenham sido originadas por pais que os amaram menos e confiaram menos neles do que os meus. Espero sobretudo que vejam isto como um acto de amor da minha parte, um sinal de que continuo a precisar de partilhar convosco a minha vida.
Acho que não teria escrito, se não me tivessem falado do vosso envolvimento na campanha «Queremos Defender os Nossos Filhos». Isso, mais do que qualquer outra coisa, fez-me entender claramente que tinha de dizer-vos a verdade: que o vosso próprio filho é homossexual, e que nunca precisou de ser protegido de nada a não ser da piedade ignorante e cruel de pessoas como a Anita Bryant.
Lamento, mamã. Não aquilo que sou, mas aquilo que deves estar a sentir neste momento. Eu conheço esse sentimento, pois senti-o quase a vida inteira. Repugnância, vergonha, incredulidade, rejeição derivada do medo de algo que eu sabia, já em criança, que fazia parte de mim como a cor dos meus olhos.
Não, mamã, não fui “recrutado”. Não houve nenhum homossexual maduro que tivesse sido meu mentor. Mas sabes uma coisa? Quem me dera que assim tivesse sido. Quem me dera que uma pessoa mais velha e sensata do que as pessoas de Orlando me tivesse chamado e me tivesse dito; «Tu não tens nada de mal, rapaz. Podes vir a ser médico ou professor, como outra pessoa qualquer. Não és maluco, nem doente, nem mau. Podes singrar na vida e encontrar felicidade e paz junto dos teus amigos – os mais variados amigos – que se estarão nas tintas para saber com quem te deitas. E, acima de tudo, podes amar e ser amado, sem teres de te odiar a ti próprio por isso».
Mas nunca ninguém mo disse, mamã. Tive de descobrir sozinho, com a ajuda da cidade que se tornou minha. Eu sei que podes ter dificuldade em acreditar, mas São Francisco está cheio de homens e mulheres que não medem o valor de ninguém à luz da sua sexualidade.
Não são radicais, nem tolos, mamã. São vendedores, banqueiros, senhoras idosas e pessoas normais, que nos cumprimentam e sorriem quando as encontramos no autocarro. A sua atitude não é paternalista nem piedosa. E a sua mensagem é simples: sim, és uma pessoa. Sim, gostamos de ti. Sim, também tens o direito de gostar de nós.
Sei o que deves estar a pensar neste momento. Perguntas: Que erro cometemos? Como deixámos que tal coisa acontecesse? Qual de nós dois fez dele o que é?
Não sei responder a isso, mamâ. No fundo, acho que não me interessa. Só sei uma coisa: se tu e o papá são responsáveis por aquilo que sou, então agradeço-vos de todo o coração, por ser esta a alegria e a luz da minha vida.
Não consigo dizer-vos o que é ser homossexual. Mas consigo dizer-vos aquilo que não é.
É não se esconder atrás das palavras, mamã. Palavras como família, decência e cristianismo. É não ter medo do corpo, nem dos prazeres que Deus para ele criou. É não julgar o nosso vizinho salvo se ele for grosseiro ou desagradável.
Ser homossexual ensinou-me a tolerância, a compaixão e a humildade. Mostrou-me as ilimitadas possibilidades da existência. Trouxe até mim pessoas cuja paixão, gentileza e sensibilidade foram uma constante fonte de energia.
Fez-me entrar na grande família da humanidade, mamã, e isso agrada-me. Sinto-me bem.
Não há muito mais a dizer, a não ser que continuo a ser o mesmo Michael que vocês sempre conheceram. Simplesmente agora conhecem-me melhor. Nunca fiz nada propositadamente para vos magoar, nem nunca o farei.
Por favor, não se sintam obrigados a responder-me já. Para mim é suficiente saber que já não tenho de mentir àqueles que me ensinaram o valor da verdade.
…………………………………………………………………………………………………………………………………………………
Do vosso filho que vos ama,
Michael”.
Este post destina-se ao tema do mês de Dezembro da "Fábrica de Letras".
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Que carta... nela sinto o que a precisamente um ano senti quando falei de mim aos meus pais, quase por obrigação, mas como me identifico... tenho que ler os livros. Assim que chegue a Portugal tenho que procurar e depois a série de tv :)
ResponderEliminarAbraços Pinguim.
sou fã do Armistead Maupin, de quem li quase todos os livros. e digo quase porque ele acabou de editar Mary Ann in Automn, mais um livro da saga Tales of The City, que ainda não encomendei, estou à espera da edição paperback. foi um escritor muito importante na fase da minha vida em que decidi deixar-me de namoradas e assumir que era outra coisa que me interessava.
ResponderEliminaradorei vê-lo aqui nas tuas mãos. tenho a certeza de que vais gostar e de que graças a ti outras pessoas vão sentir curiosidade em lê-lo.
abração, mon ami.
Nunca li uma carta de "coming out" tão comovente e tão bem escrita, até me vieram as lágrimas aos olhos (o que não é difícil) mas escrito por quem é não era de esperar outra coisa. Tenho um enorme admiração por este escritor. A minha grande pena foi não ter tido coragem para ir falar com o Armistead uma vez que me cruzei com ele na rua precisamente em S. Francisco. Ainda assim tirei-lhe uma foto
ResponderEliminarNuno
ResponderEliminarclaro que para quem, já teve a "coragem" de assumir perante os pais a sua orientação sexual, esta carta traz à memória obrigatoriamente, os casos pessoais de cada um; sucedeu-te a ti, sucedeu-me a mim, e assim acontecerá a todos.
Fazes bem em ler os livros e depois ver as séries.
Abraço amigo.
Miguel
ResponderEliminarsabes que eu costumo ler por autores; aliás tu também és um bocado assim.
E tinha aqui em casa, na prateleira, à espera de vez, como tantos outros, os quatro primeiros tomos da saga "The Tales of the City"; como referi, vou no terceiro e entretanto já comprei o sétimo.
Vou adquirir o quinto e o sexto, e presumo que o que referes seja o oitavo e último,mas que ainda não terá sido editado em Portugal.
É absolutamente envolvente, e não se consegue parar de ler; e enganem-se se pensam que estas crónicas referem apenas o mundo homossexual; de forma alguma, apenas a componente homossexual é muito forte naquela cidade e claro que há várias personagens homossexuais.
Abraço amigo.
Duarte
ResponderEliminarao fim de tanto tempo, um comentário teu aqui no blog; sei que és um seguidor atento, já temos falado sobre alguns posts publicados, mas nunca tinha registado um comentário teu; como me conheces talvez como ninguém, sabes o que isso significa para mim.
E é a ti que devo o ter conhecido este autor e ter os seus livros; sempre insististe em que eu visse os DVD's primeiro, e sempre te disse que teria que ler primeiro os livros e não me arrependo - claro que agora me apetece ver os filmes rapidamente.
Quanto ao episódio de teres encontrado o AM em São Francisco, cuja foto obviamente conheço, eu teria de imediato ter ido falar-lhe e pedir para ter um retrato com ele; mas somos nesse aspecto, muito diferentes.
Abraço amigo e diferente.
Poxa,vou procurar por estes livros por aqui! Ou pelo menos alguma coisa. Adorei a dica, meu amigo. Beijo pra você!
ResponderEliminarEdu
ResponderEliminaracho uma belíssima ideia; estão editados por assim dizer em todo o mundo e não será difícil encontrá-los.
Beijo.
Obrigado pela partilha, já sei o que irei oferecer à minha pessoa no Natal.
ResponderEliminarFelizmente, eu fui um sortudo. Porque quando "descobri" que gostava de homens. Era muito novo e a minha familia apercebeu-se disso. Mais tarde, não contei... Limitei-me a informar. Sei que fui e continuo a ser um sortudo nesse aspecto.
Forte Abraço
P.s - Um dia, escrevo um post acerca deste tema.
Francisco
ResponderEliminaracho que vais gostar muito da prenda do Natal...
Eu também me considero sortudo, embora tenha tido a coragem de, olhos nos olhos, ter contado tudo ao meu Pai, que desconhecia em absoluto e que era muito conservador. E é preciso não esquecer que foi há muitos anos, quando o assunto ainda era mais tabú que hoje; mas a aceitação foi surpreendentemente boa!
Abraço amigo.
Beautiful letter!
ResponderEliminarI love you Chako Pako!
My dear Déjanito
ResponderEliminarI would like you could writte a similar one, but I know is impossible for you to do it, for the moment...
I love you too.
Kisses.
Já ouvi falar muito bem da série embora não a tenha visto nem tenha lido os livros. Contudo parecem-me francamente interessantes. Viste a série toda? São muitos episódios?? Quanto à Anita já li muito sobre ela e acho que todos lhe temos um pequenino ódio de estimação…
ResponderEliminarQuanto à carta compreendo perfeitamente aquilo que ele sente. Eu disse pessoalmente e continuo a achar que a ignorância continua a mesma.
Um abraço.
A minha foi na véspera de Natal há catorze anos: primeiro mãe, depois pai que já sabiam, de certeza - mas nada como confirmar com um drama em família! Pessoal, cara a cara, ofensivo e lavado em lágrimas. Não falámos mais do assunto até a mãe decidir ofender o Paulo Portas com aquela palavra feia e não sobre a sua hipocrisia política. O pai e o irmão entreolharam_me-se e a partir daí percebi que a mensagem tinha passado (mesmo se não compreendiam, aceitavam e estariam ali para mim e para o preconceito!)
ResponderEliminarObrigado pela sugestão, Pinguim!
(é preciso vive-las para escreve-las!)
de Maupin só li "Michael Tolliver Está Vivo" mas já ouvi falar imenso destas histórias.
ResponderEliminarQuanto à carta, lá foi lágrima. Linda! Obrigado por partilhares.
André
ResponderEliminarpenso que sejam oito episódios; estou a ler o terceiro...
A série quero vê-la no fim.
A Anita Bryant foi a maior activista anti-gay, desde sempre; não me perguntes a que título?
A carta, é afinal, apenas um dos meios pelo qual se pode fazer o coming out; hoje, caiu um pouco em desuso, com o aparecimento da comunicação informática.
Recordo-me bem de ter lido no teu blog essa situação de quando contaste aos teus Pais.
Abraço amigo.
João
ResponderEliminartens toda a razão; só depois de ter tido uma experiência, devemos falar sobre determinado assunto.
A sugestão é muito agradavelmente partilhada, podes estar certo.
Abraço amigo.
Félix
ResponderEliminarmas esse livro que referes "Michael Tolliver está vivo" é o sétimo livro da série!
Repara que a carta foi escrita por esse mesmo personagem, no segundo volume.
E quanto à lágrima, não foste o único, podes estar certo.
Abraço grande.
Sim, eu sei mas só li esse livro apesar de ouvir falar muito na série como um todo, uma bela obra no seu todo! ;)
ResponderEliminarAbraço
Félix
ResponderEliminareu ainda não li esse, é óbvio pelo que tenho afirmado; mas parece-me essencial ler o primeiro e o segundo volume para entender melhor os restantes, pois há referências a personagens já desaparecidas que só se entenderão se as tivermos "visto" nos anteriores volumes. E no segundo, é revelado algo de muito importante para o desenvolvimento de toda a saga.
Abraço amigo.
Li os quatro primeiros livros da série das Histórias de S. Francisco. Habitualmente comprava-os na Feira do Livro, no Parque Eduardo VII, um por ano. Tenho de ir ver dos outros, apesar de atualmente já não ter tanto tempo para a leitura como gostaria.
ResponderEliminarQuanto à série, olha, não sei o que aconteceu mas detestei. Não cheguei a ver mais do que uns 5 episódios.
Já foram publicados oito, mas o último ainda não tem edição portuguesa.
ResponderEliminarSobre a série televisiva, só depois de ver poderei ter opinião.
Abraço amigo.
o melhor autor de todos os tempos!!!
ResponderEliminar"Michael tooliver, esta vivo", o penultimo romance de Maupin, é excelente, uma escrita leve, emocionante e deveras explendida.
um grande abraço :)
B. e C.
Caros B. e C.
ResponderEliminarPois eu estou a ler o terceiro volume da saga, e ainda tenho aqui o quarto para ler; já comprei o "Michael Tooliver", que é o sétimo, mas infelizmente parece não haver edição portuguesa dos quinto e sexto, respectivamente "Significant Others" e "Sure of You". E eu gostava de ler os volumes por ordem...
Sei que ele publicou recentemente um oitavo volume, cujo nome será "Mary Ann..."
É magnífica a sua escrita, sem dúvida.
Abraços para ambos.
Nunca li Armistead Maupin, nem sequer conhecia. Mas já que aguçaste a minha curiosidade vou procurar numa livraria talvez o primeiro dos "Tales of a City".
ResponderEliminarO último livro que li sobre coming out foi há cerca de um ano, também de um autor norte-americano Tom Spanbauer. O livro chama-se "Now is the hour", "Agora ou nunca" na versão portuguesa.
Trata de um coming out de um rapaz branco (Rigby), dos seus 17 anos, nos USA profundos dos anos 60, numa família de agricultores tradicional e meio disfuncional. Ao longo da maior parte da história, nunca se fala de homossexualidade mas o leitor vai-se apercebendo que está perante um adolescente diferente, mas que ele próprio não entende a sua diferença.
No final do livro, um índio assumidamente homossexual George Serano, torna-se amigo de Rigby e por entre inúmeras peripécias desperta o coming out do protagonista. Este, descobre finalmente um mundo diferente, o dos discriminados e segregados, tais como o índio Serano. Como este mesmo diz, pior que ser homossexual só mesmo ser índio. E ele tem o azar de ser ambas as coisas ao mesmo tempo.
Um livro profundamente tocante de uma humanidade sensível, à procura do seu lugar no mundo e que termina ao som de "If you’re going to San Francisco, be sure to wear some flowers in your hair”.
Aconselho vivamente. É um hino à emancipação do ser humano e um libelo contra a intolerância, a injustiça e a estupidez humana.
Lear
ResponderEliminarobrigado pela dica; deve ser muito interessante.
Esta obra, já com 8 volumes, não trata só de gente homossexual, mas de um conjunto de pessoas bastante alargado e que mostra o "universo" da cidade de São Francisco.
Muito menos foca o problema do "coming out", pois tratam-se de pessoas adultas com a sua sexualidade perfeitamente definida.
Mas nem todos têm aí as suas raízes, e daí o contacto com uma outra América, conservadora e profundamente homofóbica, que, a um dado momento, uma das principais personagens, resolve abrir o seu mundo nesta admirável carta, aqui transcrita.
Abraço amigo.