terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O Encontro


O homem está diante do espelho. Acaba de fazer a barba e tomar duche. Com uma mão agarra o pequeno michelin da cintura, olha-o no espelho e faz estalar a língua.

Hesita quanto ao que vestir. Como hesita, pensa que adiantará serviço se vestir a camisola interior e os slips. Procura uns brancos, com riscas azuis. Comprova que
não têm nenhum buraco. Veste-os. Por outro lado, quando tem a camisola interior na mão parece-lhe que talvez seja melhor não a usar, e guarda-a na gaveta. Abre outra porta do armário e contempla as camisas. Há uma branca, italiana, de algodão, que comprou há umas semanas e que lhe agrada especialmente. Pega no cabide pelo gancho e observa a camisa; o tacto agrada-lhe. Mas o branco fá-lo mais gordo. Devolve-a ao seu lugar. Com os dedos, como quem passa as páginas de um livro, acaricia as mangas de todas as camisas. Decididamente, as que lhe assentam melhor são a cinzenta e a preta. Mas ultimamente usou-as tão frequentemente que está farto delas. Se no fim se decidir por uma dessas duas camisas, poderia vestir as calças cinzentas, ou os jeans pretos.

À hesitação já tradicional de não saber como vestir-se para ficar mais favorecido, acresce que não tem a mínima ideia de como irá ela. Virá com um vestido especialmente ostensivo, ou de um modo simples? Se, suponhamos, viesse vestida desportivamente, ele, com os jeans pretos e a camisa cinzenta ou preta, estaria bem. Porque o casaco é outra das dúvidas: usará o blazer cinzento, o mais clássico, ou o de quadradinhos esverdeados? Se escolhesse a camisa preta, o blazer de quadradinhos serviria para quebrar um pouco a seriedade da camisa e das calças, que poderá ser excessiva. Claro que, com uma gravata, também se pode quebrar a austeridade cinzenta e negra da camisa e das calças. Usará gravata ou não? Com a mão aparta as camisas e tira o cabide das gravatas. Qual colocará? Uma lisa, de riscas, aos quadradinhos? Com o blazer de quadrinhos, a gravata de padrão idêntico poderá ficar de mau gosto. Ou, precisamente, pôr quadradinhos sobre quadradinhos resultará num choque interessante, brutal.

Claro que também poderia não usar gravata. Mas se não a põe e ela se apresenta muito bem vestida, não ficará demasiado reles? A mescla de gravata e jeans dar-lhe-á um ar ambíguo, que talvez lhe permita resolver a situação, vá ela como for. O problema é se essa combinação de gravata de quadradinhos, jeans e blazer de quadradinhos não resultará demasiado irónica, dependendo do que ela vestir. E se usar as calças de cheviote? Com as calças de cheviote, a força da camisa escura e a ironia do choque dos quadradinhos da gravata e dos do blazer não arrastaria, além disso, o toque burlesco dos jeans; um toque burlesco que a ele lhe parecia bem, mas que, como já se disse repetidamente, tem medo que choque com a vestimenta dela.

Irá, pois – repete mentalmente, para ver se o conjunto escolhido o satisfaz –, com camisa cinzenta, gravata de quadradinhos acastanhados, blazer de quadradinhos esverdeados e calças de cheviote, também acastanhadas. Talvez o que lhe faça falta, agora, seja passar de teoria à prática. Assim faz: veste a camisa cinzenta, as calças de cheviote, a gravata de quadradinhos acastanhados e o blazer de quadradinhos esverdeados. Olha-se no espelho. Os pés, ainda por calçar, contrastam escandalosamente. Tem que decidir que sapatos calçar, e toma a determinação de escolhê-los rapidamente, não seja que os sapatos gerem uma nova cadeia de dúvidas. Calça os castanhos, de pele, sem pensar no assunto.

Mas, e se ela comparece ao encontro com um vestido de cheviote de uma cor parecida à das suas calças; parecida mas não exactamente igual, que é quando pior jogam estas combinações? Isto para não falar da possibilidade de que se apresente com um vestido aos quadradinhos. Uma coisa é ele brincar, deliberadamente, a fazer chocar dois tipos de quadradinhos diferentes – os esverdeados do blazer e os acastanhados da gravata –, porque considera que este choque pode ser atraente. Mas se ela também for de quadradinhos, tanto choque tornar-se-á ridículo. Como saber de que modo se vestirá ela? Não lhe disse a que tipo de festa iam. Agora que pensa nisso, ao telefone pareceu-lhe com pouca vontade de atenções. Quando lhe ouviu a voz, opaca e requebrada, e lhe perguntou se estava constipada, ela respondeu com uma evasiva e desligou à pressa. Assim, perante a evidência de que não há forma humana de saber como ela irá, talvez o que tenha que fazer seja jogar com os quadradinhos. Assim, pelo menos, não se aventurará ao perigo de que, se ela se apresentar com alguma peça de quadradinhos – se viesse com um blazer de quadradinhos seria caso para suicidar-se –, se exponham ambos ao ridículo. Mas deixará o blazer ou a gravata? Enquanto pensa no assunto, prepara um café. Serve-o num copinho de vidro e toma-o sem açúcar. Finalmente decide-se: deixará o blazer, já que não só é muito mais provável que ela se apresente com blazer de quadradinhos que com gravata de quadradinhos, como, caso coincidam neste ornamento, uma gravata sempre é muito mais pequena – e muito mais discreta, portanto – que um blazer. Que blazer usará, então? O preto, enrugado? O cinzento, mais clássico? Prova o cinzento e torna-se-lhe evidente que não é o que lhe assenta bem. Tira-o e veste o preto. Mas, apesar de enrugado, parece-lhe que fica demasiado clássico, já não apenas se ela se apresentar vestida de maneira mais simples, mas inclusive por si só, abstracção feita de como possa ela vir. Se se veste com blazer preto, camisa cinzenta, gravata de quadradinhos, calças de cheviote e sapatos de pele, não ficará estranhamente clássico ao lado dela, se ela aparecer vestida, suponhamos, com jeans, um jersey e uma gabardina? Claro que podia usar um ardil: espreitar pelo buraco da porta e, segundo ela se vestisse, decidir no último instante se deixar a gravata posta ou, num segundo, tirá-la para ficar vestido tão informalmente quanto ela.

É todavia tão importante que as vestimentas de ambos, digamos, estejam conjugadas? Não é uma vontade de perfeição desmesurada? Que problema há se ela for de um modo e ele de outro bem diferente? Inclusive pode ter certa graça que um vista de uma maneira e outro de outra. Ou pensa que o facto das indumentárias de um e do outro se sintonizarem é um bom augúrio para a relação? Em vez de queimar os fusíveis meditando como tem que arranjar-se para que o vestido dela não choque com o seu, o que tem que fazer é vestir-se como achar que ficará melhor. Mas, como havia decidido que ficaria melhor?

Recupera a ideia dos jeans e do blazer de quadradinhos. Tira os sapatos, as calças de cheviote e veste os jeans pretos e, outra vez, os sapatos. E troca de blazer. Vê-se ao espelho: agora que repara bem, parece-lhe que ficará melhor de blazer preto. Tira o de quadradinhos e volta a pôr o preto. Mas, os sapatos castanhos, de pele, com os jeans pretos? Fatal. Procura os sapatos pretos com atacadores, mas estão sujos. Os mocassins pretos, por outro lado, estão limpos. Mas desde há dois anos que os acha tão foleiros que nem os toma em consideração. Apressa-se a sentar-se, arregaça a camisa e engraxa os sapatos pretos.

Troca de sapatos e olha-se ao espelho. Está bem, mas há qualquer coisa que não encaixa. E se repudiasse a teoria das camisas escuras e procurasse, por exemplo, a camisa vermelha, que sempre favoreceu a cor da sua cara? Tira o blazer preto e a camisa cinzenta e veste a camisa vermelha e, outra vez, o blazer preto por cima. Contempla-se no espelho. Não. Volta a tirar o blazer e a camisa. Sem tempo para teorizar, experimenta todas as variantes possíveis: a camisa bege com o blazer preto; a camisa verde com o blazer de quadradinhos; a camisa amarela com o blazer preto; a camisa verde com o blazer cinzento; a camisa cinzenta com o blazer cinzento; a camisa branca com o blazer de quadradinhos; a camisa amarela com a gravata verde e o blazer preto; a camisa fúchsia com a gravata de riscas azuis e amarelas e o blazer de quadradinhos; a camisa castanha com o blazer bege – que não tinha considerado antes –; a camisa branca com o blazer cinzento…

Quando soa a campainha está vestido com um anoraque azul, uma camisa branca, um lacinho abominável, umas calças de lã salpicadas de castanho, bege e verde, e meias pretas. Ainda não escolheu os sapatos. Para não se ver afogado num novo mar de dúvidas, no último instante decide abrir a porta sem antes ter olhado pelo ralo. Encontra-a diante dele, vestida com uma simples túnica negra e uma gadanha na mão. O homem olha-a, entre decepcionado e surpreendido.
– Não me digas que é um baile de máscaras – diz.
– Não.

Visto aqui.

12 comentários:

  1. Indecisões na hora de vestir. E quem as não tem?

    Bem-hajas!

    Beijinhos

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  2. Isabel
    o problema reside na "pessoa" com quem nos vamos encontrar...
    Beijinho.

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  3. uma parábola impressionante! devia fazer pensar. e faz. pelo menos a mim! quem é o autor? tu puseste a ligação para o jugular, mas sabes mesmo quem é o autor?

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  4. Mary
    é o tal encontro a que todos não vamos faltar...
    Beijinho.

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  5. Paulo
    sei e não sei, pois sendo o Jugular um blog colectivo, o autor é o único que usa um nick name: Shyznogud.
    Claro que quando da publicação deste texto, em comentário, solicitei a autorização para transcrever o texto aqui e recebi como resposta um simpático "Use e abuse"...
    Apenas sei isso, e que escreve muito bem sobre vários assuntos, nomeadamente políticos.
    Abraço amigo.

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  6. Bem... de preto e de gadanha na mão é de arrepiar!!!
    Ela devia era de se apresentar com um ancinho para juntar toda a roupa que ele deixou por lá espalhada :)
    Mas que homem indeciso até para se encontrar com a morte!

    Beijinhos

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  7. Mz
    quem não se torna indeciso numa situação dessas?
    Beijinho.

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  8. A música do blog soa muito familiar aos meus ouvidos. É a Maria Rita. Nossa brasileiríssima, filha de Elis Regina. Muito bom!

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  9. Olá Cláudia
    Sim, é a Maria Rita, que é bastante popular aqui em Portugal.
    Mas, a mim, não me faz esquecer a voz e a presença da sua mãe, a minha amada Elis.
    Beijinho.

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