E antes de falar sobre a peça, gostaria de mostrar aqui o meu apreço por esta Companhia de Teatro, fundada em 1973 por Jorge Silva Melo, hoje à frente da Companhia “Artistas Unidos” e por Luís Miguel Cintra, ambos vindos do teatro universitário e que reuniram em torno do seu projecto um pequeno grupo de actores profissionais e que até ao 25/4 trabalhou sem sede própria e apenas apoiada esporadicamente pela Gulbenkian. Em 1975 participou nas campanhas de dinamização do M.F.A. e desde então tem vindo a ser subsidiada pelo Estado e conseguiu a sede onde ainda hoje apresenta a quase totalidade dos seus espectáculos, ali perto da Igreja de S.Mamede, entre o Rato e o Príncipe Real. Em 1980, Jorge Silva Melo saíu e entrou para a direcção Cristina Reis, responsável quase sempre dos cenários e do guarda-roupa das peças apresentadas. Embora com um núcleo de actores base, a Cornucópia sempre manteve a presença de convidados quer actores quer outros colaboradores. Seria injusto estar a falar de personalidades que foram marcantes nesta Companhia, ao longo destes 36 anos, pois algum nome poderia ficar injustamente esquecido. Com uma programação extremamente cuidada, a Cornucópia trouxe até nós textos até então nunca representados no nosso país, quer de novos autores como de clássicos, e a dramaturgia portuguesa nunca foi esquecida. Nos últimos anos tem estabelecido co-produções importantes com o Teatro Nacional D.Maria II, o Teatro Nacional S.João, o Teatro Nacional S.Carlos e outros Teatros Municipais (S.Luiz, Rivoli, Almada). A sua figura principal é indiscutivelmente Luís Miguel Cintra, uma personalidade a que o teatro português muito deve e uma das pessoas mais importantes da Cultura portuguesa do final do séc.XX e do séc. XXI.
A peça em causa chama-se “A Cidade” e baseia-se em peças cómicas de Aristófanes, escritas e representadas em Atenas, a cidade berço da democracia, no final do séc.V a.C. De notar que este dramaturgo é o autor de comédias mais antigo da História; são-lhe atribuídas 44 peças mas apenas 11 são conhecidas completamente e que foram traduzidas para a nossa língua pela Professora Maria de Fátima Sousa e Silva, tendo a partir desta tradução, Luís Miguel Cintra feito uma extraordinária colagem de 9 delas, dando assim origem a esta peça.
Peço desculpa do “plágio”, mas a forma mais concisa de falar sobre o conteúdo desta peça é a transcrição do texto da propria tradutora, destinada a este espectáculo:
“É um desafio trazer hoje à cena uma comédia de Aristófanes.Vinte e cinco séculos de distância, a Europa inteira a percorrer, eis o abismo de quem, no séc.V a.C., granjeou fama de génio teatral. O que fez a vitalidade da comédia desse tempo – a atenção ao quotidiano imediato, a reacção frontal, a alusão directa, a intervenção obre o colectivo – viria a ser também o obstáculo à sua pervivência. Como ressuscitar, hoje, esse quadro do passado?
Mas afinal, se vencida a barreira do contexto histórico, dos seus agentes concretos, à procura da essência profunda de cada criação, a descoberta é, para o Homem de hoje, compensadora. A Humanidade continua a ser a mesma, pouco mudou no que são os seus impulsos genéticos; e nem mesmo as alterações são radicais, numa vida colectiva que a chamada ‘cultura ocidental’ importou da velha Atenas democrática. E de repente, Aristófanes revela-se como inesperadamente moderno, compreensível, próximo; sem perder aquele exótico que lhe advém da mesma distância e do estatuto que lhe cabe de ‘clássico’.
É esta a constatação a que A Cidade nos convida. Não se trata do título de uma comédia em exclusivo, mas do que melhor convém à ‘comédia’ de Aristófanes. Ou não foi a sua vida de poeta, por inteiro, dedicada a tomar o pulso a cada experiência, crise, sucesso, de uma cidade, a sua Atenas? E não foi essa Atenas paradigma de todas as vivências que as cidades modernas bem conhecem?
Das onze comédias conservadas, nove estão presentes, de forma mais ou menos extensa, em A Cidade. A selecção de cenas seguiu um objectivo, e comecemos pelo essencial: que do conjunto avultasse o quadro realista de uma sociedade, sondada em cada face do seu quotidiano. Uma verdade suporta a coesão geral do espectáculo, fiel de resto ao processo histórico vivido pela velha Hélade: a de certeza de uma decadência que, sem tréguas, desmoronou a perfeição de um projecto – uma igualdade partilhada por todos os cidadãos.
Ao criar a democracia, a Grécia detectou-lhe de imediato os defeitos, aqueles mesmos que se nos tornam no quotidiano, flagrantes. Que o cidadão justo seja a excepção e não a regra. Que o político ‘ideal’ seja o corrupto, o padrão refinado de todas as pechas da classe. Que a convivência entre homem e mulher em sociedade se não oriente pela cooperação, mas pelo conflito. Que a ruptura de fronteiras estimule não a coesão, mas a xenofobia. Que a educação e a cultura promovam a autonomia, o prestígio social, mas também a ambição e o oportunismo. Que a inovação condicione os valores e incentive os vícios. Que as artes, após um apogeu de excelência, mergulhem no exagero reformista.
Num lapso de tempo vertiginoso, o sonho dava lugar ao desencanto. A fuga da realidade estimulava a imaginação e a utopia. Soluções para a crise – que a cidade real se mostrava incapaz de pôr em prática – eram testadas num mundo virtual, o da ficção cómica. Lá, as mulheres impunham ordem no fracasso masculino, pela greve ao sexo ou pelo transplante, para o colectivo, de conhecidas credenciais domésticas. A felicidade voltava a Atenas, na ressurreição simbólica de uma Paz tão desejada ou no regresso, clarividente e justo, do Dinheiro ao convívio dos cidadãos. Ou mesmo, em última análise, a fantasia abria acesso à fuga, dos males irremediáveis da cidade real para as galáxias ideais, onde o retorno à Idade do Oiro parecia ainda possível.
Esforço baldado. A decadência era um mal sem retrocesso. A mesma Atenas que aplaudia os brados dos poetas, em incansável denúncia, insistia nas debilidades e nos erros. E, atrás dela, os milénios que a perpetuaram. Artes da inevitável imperfeição humana.
Da velha comédia, A Cidade capta também o tom, além da mensagem, a alma do espectáculo. O espaço continua a ser o do colectivo. As figuras, mais do que as comprometidas com o passado histórico, são sobretudo os tipos, humanos e sociais, com tradição perene. O cómico combina o sofisticado com o popular, num equilíbrio de sucesso. Não se hesitou perante as ousadias que enriquecem a cena, o disfarce, o voo, a dança, a música, a materialização do abstracto.
O texto, por seu lado, apostou na actualização coloquial. Seleccionou referências pontuais – para que um certo tom sobrevivesse. Sem abandonar a riqueza das nuances – o obsceno, o retórico, o poético – que o original proporcionava. Depois de desmontada e reconstruída, a Cidade, no espelho cómico que lhe dá vida, sobreviveu fiel à sua própria natureza: ‘política’ por definição, vigorosa, cáustica, realista sob um véu de fantasia. Mas sobretudo talentosa, como se exige de um produto de Arte.”
Resta-me acrescentar que o espectáculo é uma festa para os olhos e para os ouvidos: tão depressa estamos a ver deuses e grandes vultos da cultura grega, como temos a sensação que estamos a assistir a uma revista; nem sequer faltam os finais dos dois actos, como apogeu. A interpretação é notável e está a cargo de Bruno Nogueira, Carolina Villaverde Rosado, Dinarte Branco, Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Gonçalo Waddington, José ManuelMendes, Luísa Cruz, Luís Lima Barreto, Luís Miguel Cintra, Márcia Breia, Maria Rueff, Marina Albuquerque, Nuno Lopes*, Ricardo Aibéu, Rita Durão, Rita Loureiro, Sofia Marques e Teresa Madruga. A encenação é, como habitualmente de Luís Miguel Cintra.
*Nuno Lopes actuou com canadianas, mostrando um enorme profissionalismo, pois fracturou um pé, dois dias antes, durante o espectáculo. E é um enorme actor…além de ter um belo corpo que desnuda quase integralmente…
Gostava de um dia ir ver uma peça ao Cornucópia, ainda que conheça uma dos actores da companhia, tenho curiosidade em assistir ao teatro desta companhia.
ResponderEliminarRicardo
ResponderEliminaresta peça é da Cornucópia; apenas é apresentada no S.Luis por ter sido assim programado, talvez por a peça poder ser vista por muito mais gente.
Quando fui, o teatro tinha lotação esgotada.
É uma peça imperdivel, e além do mais ris-te a bom rir...
Abraço amigo.
O teatro faz bem à alma, e pelo que li, ver o Nuno Lopes também fez bem. =P
ResponderEliminarObrigado pela sugestão, vou ver se arranjo companhia. ;)
Abraço
André
ResponderEliminar"A cidade" é uma peça que faz bem à Vida. Absolutamente divertida, mas deixa-nos a pensar.
E é um trabalho fabuloso e nada fácil de colagem das diversas comédias de Aristófanes, só ao alcance de um homem como Luís Miguel Cintra.
Quanto ao Nuno Lopes, é uma questão de pormenor, claro, mas não deixa de ser interessante...
Abraço amigo.
Tem actores que eu adoro... e esse "detalhezinho" do Nuno (comece-se o dia um bocadinho fútil... certo?)... oh oh!
ResponderEliminarÉ nestes momentos que gostava de esquecer o passado e ser lisboeta... (eu não disse isto... shiiiu)
Beijinhos
Já nem me lembro de ir ao teatro... naturalmente que repito o mesmo comentário que fiz ao teu último post (: E deve haver quem, aí perto de Lisboa, nem se aperceba da sorte que tem, por vezes... Beijo
ResponderEliminarIzzie
ResponderEliminarhá nesta peça a junção de "velhos" colaboradores da Cornucópia, como o LMCintra, a Márcia Breia, o LLBarreto, a Teresa Madruga, com outros que já têm participado, caso do Nuno Lopes, Rita Loureiro, etc. e alguns provenientes, por exemplo dos Contemporâneos, como o Bruno Nogueira e a Maria Rueff.
Beijinho.
Eva
ResponderEliminarclaro que a oferta de teatro no Porto não é nada como em Lisboa, mas já há vários teatros a funcionar, como o Rivoli, o S.João, o Carlos Alberto, o do Campo Alegre(?), etc.
E sei que tu não vives no Porto; mas a distância não é muita...Eu também não vivo em Lisboa, mas a cerca de 15 kms.
Apesar de tudo há mais hipóteses aí do que noutras regiões do país; estava a esquecer o Teatro Circo de Braga, também...
Beijinho.
Olá Pinguim
ResponderEliminarGosto muito de teatro e gosto muito da Cornucópia, também. Ainda não vi esta peça, mas tenho muito interesse já que acho Aristófanes genial. De resto, até considero que os Gregos criaram tudo o que verdadeiramente vale a pena, na nossa civilização.
Bjs
Gostava mesmo muito de ir vere essa peça...ainda bem que escreveste sobre ela!
ResponderEliminarUm beijo
Teresa
ResponderEliminarse é como dizes, não podes mesmo perder; gostaria depois de ter a tua opinião.
Beijinho.
Free_soul
ResponderEliminare olha que é uma peça que faz muito bem ao ego das mulheres; tomam conta do poder, fazem greve ao sexo, até os maridos fazerem a paz e voltarem para casa e é super divertida, e principalmente é uma peça inteligente.
Vai, bem acompanhada, claro, e depois diz qualquer coisa.
Beijinho.
Ando precisando muito ir ao teatro.
ResponderEliminarAbsurdo ficar tanto tempo sem fazer um programa do tipo morando numa cidade como o Rio de Janeiro, que tem mil opções.
E parece que seu programa foi realmente excelente.
Bjaõ
Olá Autor
ResponderEliminarjá tinha saudades de um comentário teu. Deixa-me reforçar aqui os meus parabéns pela evolução tão bonita da tua vida sentimental: toda a felicidade do mundo para vocês.
Sobre teatro, pois foi uma dia em cheio: duas peças distintas, tanto nas capacidades de produção como no tema, mas ambas muito boas.
Eu vou pouco ao teatro, mas ao contrário da maior parte das pessoas vejo mais teatro que cinema, pois o cinema vejo mais em casa.
E cada vez que vejo uma peça, me questiono porque vou tão pouco...O teatro é maravilhoso - eles estão ali a trabalhar par nós, na nossa frente, é quase intimo.
Abraço grande.
já tinha olhado para o cartaz com olhos de a ir ver. Agora está decidido.
ResponderEliminarObrigada!
Violeta
ResponderEliminarcom certeza não te irás arrepender. Depois, "dá notícias"...
Beijinho.
Eu adoro teatro, e artes em geral, o que não faz de mim grande conhecedora, infelizmente, adoraria assistir esta peça e conhecer todos os artistas que você menciona, por aqui temos também ótimos atores e ótimas peças.
ResponderEliminarGrande Abraço.
Ah...gostei muito da música do dia...
Adriana
ResponderEliminarclaro que vocês têm excelentes actores; recordo duas peças brasileiras que vi aqui em Lisboa, há muitos anos, ainda eu estudava e que nunca vou esquecer: "Vida e morte Severina" acho que baseada em João Cabral de Melo Neto e "Pega Fogo", maravilhoso duelo entre Paulo Autran e Tónia Carrero.
De agora o meu destaque vai para duas Senhoras que adoro: Fernanda Montenegro e Marília Pêra...
Beijinho.
Parece-me interessante.. :)
ResponderEliminarBeijinho
Martinha
ResponderEliminarse puderes, não percas...
Beijinho.
Caro Amigo
ResponderEliminarTenho andado fugido, infeliz e necessáriamente ocupado com outras matérias bem mais desagradãveis.
Volto agora e vejo aqui uma boa colecção de textos e de sugestões.
Haja tempo e disposição e decerto vou aproveitar estas magnificas dicas que aqui nos trazes.
Gostei muito do texto deste post! Como sempre aliás!
Um abraço
Com senso
ResponderEliminartenho estranhado realmente a tua ausência, não só nas postagens, sempre tão apreciadas, como nalgum comentário de certos posts de índole cultural, que geralmente não deixas passar em claro.
Como estou a par das circunstâncias limitativas da tua vida normal, já estive para te ligar a saber do que se passa e irei fazê-lo o mais breve possível.
Espero que possas reatar em breve a tua ligação à blogosfera, a qual constato com algum pesar está a passar por uma grave crise.
Abraço reforçado.
Ui... o Teatro... Palco de Vidas. Que passam. Que vão. Que ficam. Quando era miúda escrevia peças para a escola. Depois cresci e deixei de as escrever. Passei a assistir apenas. E, infelizmente, apenas às vezes.
ResponderEliminarBeijinho*
Olá Lala
ResponderEliminaruma faceta muito curiosa da tua vida que não conhecia...
Quem sabe se um dia esse dom volta?
Beijinho.
É verdade... Gosto de imaginar diálogos. Engendrar vidas imaginárias. Misturar tudo de alma e coração et... voilá!
ResponderEliminarQuem sabe, pode ser que um dia a veia me salte outra vez... É que isto de vez em quando dá-me... por exemplo nunca me imaginei a escrever contos... e á lá vão dois... assim... de repente!!
Beijinho*
Lala
ResponderEliminareu vou voltar ao assunto, podes estar certa.
Beijinho.
desta vez sou que fico cheio de inveja, 2 peças no mesmo dia. durante uns anos não perdia um espectáculo da cornucópia, adorava (e adoro) o LMC, acho que tem uma voz lindíssima. agora há muito tempo que não vou ao teatro do bairro alto, e tenho muitas saudades.
ResponderEliminarMiguel
ResponderEliminarolha, sabes o que te digo? Há dias!!!
Eu gosto muito de ver teatro no domingo à tarde e proporcionou-se ver a outra peça à noite, uma no S. Luiz, outra na Rua do Século, ali bem pertinho e pumba...lá fui.
O LMC é um dos vultos da Cultura portuguesa dos últimos 40 anos.
Abraço grande.