segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Uma noite inesquecível


Nos tempos da “outra senhora”, o deserto cultural que constituía o nosso país, tinha anualmente um oásis, durante alguns dias, com um acontecimento chamado “Festival Gulbenkian da Música”, e que era da responsabilidade de uma das pessoas que mais fez pelo desenvolvimento da cultura em Portugal, ao longo das décadas de 60/70, Madalena Azeredo Perdigão, esposa do todo poderoso e muito influente presidente da Fundação Calouste Gulbenkian.

Assim, durante alguns anos, pudemos ver e ouvir em Lisboa grandes nomes da música clássica e contemporânea, do canto operático e da dança clássica e moderna.

Aguardado com expectativa pelo público, quando os ingressos eram postos à venda, longas filas se formavam, com horas de antecedência, para se obter os bilhetes que interessavam. Eu era um dos que não faltava e graças a estes festivais tive o imenso prazer de poder assistir ao vivo, no Coliseu, a concertos de grandes orquestras, como a Sinfónica de Berlim, dirigida por Karajan, a um memorável e dos últimos concertos do extraordinário pianista Artur Rubinstein, por mais que uma vez aplaudi o mais famoso par do ballet clássico da segunda metade do século XX: Margot Fonteyn e R.Nureyev, mas também os modernos representantes do ballet contemporâneo de então: Merce Cunningham, Martha Graham, Alvin Ailey e naturalmente Maurice Béjart, que era aliás habitual nos programas do festival.

No ano de 1968, mais uma vez Béjart estava presente, para apresentação do seu último trabalho, na altura, uma versão moderna e perfeitamente assombrosa de “Romeu e Julieta”, com música de Berlioz. Para esse espectáculo, foi necessário desmontar mais de metade da plateia do Coliseu, e em vez do bailado ser dançado no clássico palco italiano, isso acontecia num alargado círculo, dividido em sectores, quais gomos de uma laranla, alternadamente a preto e branco, nessa parte “conquistada” à plateia; aliás todo o espectáculo era dominado pelo preto e branco, incluindo os figurinos dos intérpretes. A conhecida obra de Shakespeare er aqui transformada num fortìssimo libelo anti-bélico (estava-se em plena guerra do Vietnam), que ia num “crescendo” de violência até à cena final, arrebatadora, em que a música era por vezes abafada pelo som da metralha e se ia ouvindo repetidamente o célebre “make love, not war”.

No final, o público estava em delírio.

Sucede que este espectáculo tinha duas datas consecutivas, e eu, afortunadamente, conseguira bilhete para o primeiro dia, 6 de Junho. Claro que a lotação estava esgotada para os dois dias.

Quando os aplausos infindáveis ainda se faziam ouvir, nomeadamente os do camarote presidencial, onde pontificava o “venerando” chefe de Estadp, Américo Tomaz e parte do Governo, eis que Béjart, como sempre de negro vestido, aparece à boca de cena, pede silêncio e numas breves palavras disse o que então era impensável ouvir pùblicamente em Portugal: - que estava muito satisfeito com a receptividade do público português ao espectáculo e que não podia deixar de homenagear nessa noite, um homem, paladino da liberdade e que tinha sido assassinado umas horas antes – Robert Kennedy, um homem, dizia, que sempre fora ao longo da sua vida um defensor das liberdades contra as opressões, e que para ele, Béjart, era uma ocasião única referir esse facto num país governado por uma ditadura, onde a liberdade não existia...e por aí fora...

Claro que, perante estas palavras, enquanto as “excelências” desapareciam apressadamente de cena, o entusiasmo do público, maioritariamente jovem crescia exponencialmente e o impensável aconteceu uma vez mais: o Coliseu a cantar quase em uníssono, a Internacional!!!!

Quando finalmente, se saiu do Coliseu, a rua parecia um comício e a animação era enorme, não só na Rua das Portas de Santo Antão , mas também pelo Rossio e Restauradores. Embora se visse anormal aparato policial, e era já uma hora da madrugada, não houve qualquer repressão policial; mas as consequências foram imediatas, pois ainda nessa noite Béjart foi conduzido à fronteira, e só regressou a Portugal, depois do 25 de Abril, e òbviamente foi cancelado o segundo espectàculo do “Romeu e Julieta”.

Foi das noites mais memoráveis dos meus tempos de estudante universitário, em Lisboa.

18 comentários:

  1. Amigo Pinguim, mais uma página belíssima e cheia de força do teu diário de vida, que tão generosamente partilhas connosco. Deve ter sido, sem dúvida, uma noite inesquecível, não só pelo espectáculo, mas também por esse sentido de união, que só de ler dá arrepios na espinha e pele de galinha. Hoje em dia, momento desses parecem raros...

    Obrigada pela partilha :)

    Beijoquitas

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  2. Olá Pinguim, eu sou a Duda, das Outras Mulheres. O meu paraiso fica no alto Alentejo.
    Gostei muito do teu blogg.

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  3. Meu amigo que história delíciosa. Juntando esta a tantas outras histórias que eu já ouvi posso concluir que a cultura foi uma das principais formas de protesto contra a ditadura.
    Obrigado por partilhares esse momento.
    Espero não ser presunção minha, mas ficaria muito honrado em pensar que fui eu que despertei essa recordação.
    Um abraço.

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  4. Doce amigo Pinguim

    de facto ouvir cantar em uníssono a internacional deve ter sido memorável e com tão bela descrição do momento me senti captivada pelas tuas palavras e em mim trespassou essa força única e que todos deveriam respeitar mas que hoje em dia cada vez mais se quebra e que dá pelo nome de Liberdade.

    obrigado por exprimires em cada linha o respeito que todos deveriamos ter pelo "outro", e que em nós também existe e que muitas vezes descuramos.

    beijokitas muitas

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  5. Bela «tranche de vie», meu caro! Muito obrigado!
    Escusado será dizer que muito dificilmente se vinha a saber o que acontecera, nos dias seguintes, a não ser por alguém que tivesse vivido os acontecimentos...
    Eu não tenho memória do incidente, mas lembro-me que com frequência era o meu pai quem trazia as notícias para casa, aquelas que não saíam nos jornais nem faziam o «Telejornal»... E às vezes era com cada uma mais «cabeluda»...
    Abraço! :-)

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  6. Carìssima Catwoman
    eu, no meio de tanta emoção, só tive pena de uma coisa, foi de ter ido só ao Coliseu; no final, sentia que tinha uma enorme vontade de comunicar a outrém, toda aquela vivência; mas aquem?
    Agora temos outros meios, mas , felizmente, os tempos são outros.
    Por tudo isso, acho que devo ir compartilhando estas memórias, para que não morram comigo.
    Beijoquitas.

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  7. Olá Duda, sê benvinda, apesar de já teres por aqui passado uma vez, salvo erro; já visitei o teu blog, até o tenho linkado, mas não tens postado nada, pelo que presumi que estivesses de férias.
    Obrigado pelas tuas amáveis palavras, e volta sempre, pois este espaço não é só meu, éuma partilha.
    Beijoquitas.

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  8. Meu caro Paulo
    não é o presunção, meu bom amigo, não senhor, foi a tua música, que originou o meu comentário sobre o Jorge Donn, que me trouxe à memória o Béjart e as suas participações no festival Gulbenkian, onde precisamento num ano anterior, tinha assistido a esse magnífico "Bolero" de Ravel.
    Um abraço grande.

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  9. Minha querida Cris
    é curioso que o que "unia" aqueles milhares de pessoas que entoaram a Internacional, não eram convicções políticas fundamentadas em partidos, que os não havia, à excepção do P.Comunista, mas os jovens comunistas que estariam presentes, não seriam , nem de longe nem de perto , uma maioria, estou certo disso. Eram vivências do dia a dia, das lutas académicas, em que todos, ou quase todos ', participámos; eu, por mim falo, nem pensava sequer em partidos políticos; só ansiava por poder ter acesso ao que um jovem da minha idade tinha noutros países, e eu não; possìvelmente, faltava-me consciência política, mas não a força e o grito da revolta.
    Beijoquitas.

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  10. Meu caro Ric
    ainda bem que gostaste desta página da vida, que ao mesmo tempo é reveladora, passando do particular para o geral, de toda uma forma de viver que acontecia nesta Lisboa dos "60", a Lisboa dos "Verdes anos" e do Carlos Paredes, das livrarias, com caixotes, nos fundos, a que nos dirigíamos àvidamente à busca das obras interditadas pela censura, das lutas académicas de 62 e mais tarde de 69. Enfim tempos que se recordam e que fazem um tempo.
    Abraço.

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  11. Ei pinguim,

    Sabes apesar de a minha vivência ter começado a tomar forma no pós 25 de abril, vivi esses tempos através do meu pai, através de infelizes realidades que me ia descrevendo...

    É bom que não se deixe cair no esquecimento essa sensação se angustia, privação e desconfiança...

    Infelizmente hoje estamos a cair noutro tipo de represões, bem mais floreadas e pintadas de cores bonitas... os valores do easy away... pfuuuuuuuuu.... bem adiante.

    Abraço, fica bem.

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  12. Realmente grande história... aliás a cultura sempre será uma grande e saudável arma... A história só é a prova concreta de que aquele sistema de politica não é e nunca será o melhor em nenhuma parte do mundo. Ainda há dias vi uma reportagem de Cuba e fiquei chocado com aquela realidade... Faça-se sempre algo para agitar as mentalidades... Abraço grande e até breve, é sempre bom visitar-te!

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  13. Excelente relato!
    Ainda bem que é passado!
    Ab

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  14. Olá Yellowastonaut
    é bom que as pessoas mais novas tenham consciência de factos passados, pois não era fácil, em todos os campos, muitas vezes viver de acordo com o nosso pensamento, e ainda menos, não o podermos expressar,e eu, mais uma vez, repito, nunca fui "empenhado" numa causa, era apenas um dos muitos portugueses anónimos que apenas tinha a ambição de ser livre.
    Beijoquitas.

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  15. Amigo Lover
    obrigado pelas tuas palavras.
    Tens toda a razão, pois muitas vezes há a tentação de confundir a ditadura e a repressão com regimes de direita, mas eles existem em todo o lado. Cuba, mesmo com a atenuante de um bloqueio americano inadmissível, é disso um bom exemplo.
    Abraço amigo.

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  16. Caro Bernardo
    ainda bem que gostaste e claro que é passado; por muitos problemas que haja agora, nada se compara a esse tempo. Portanto, que desistam os saudosos do passado em pedirem o "regresso" deum "salvador", pois este país não quer nunca mais salvações dessas.
    Abraço.

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  17. o Coliseu a cantar quase em uníssono, a Internacional!!!!


    estarei hoje mais sensivel, ou uma lágrima está a querer brotar? A minha renite alérgica sempre a atraiçoar-me quamdo por aqui passo e por aqui viajo...

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  18. Luís, meu caro amigo
    é a mais pura das verdades; o estado Novo, às vezes, já perto do seu extertor, resolvia proporcionar-nos algumas surpresas; lembro-me quando soltaram em pleno Rossio um pobre porco vestido de Almirante - foi um escândalo...
    Quanto a essa "renite crónica", eu também a sinto muitas vezes, mas é um "mal" bastante reconfortante.
    Abração.

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Evita ser anónimo, para poderes ser "alguém"!!!