Portanto, o regresso, com paragens programadas para
Belgrado, Veneza e Marselha, iniciou-se com uma longa viagem nocturna de Atenas
para Belgrado; era um comboio daqueles com compartimentos para oito pessoas,
quatro de cada lado
e preparamos-mos para dormir, (os bancos deslizavam e
permitiam-nos dormir estendidos, mas com um conforto muito relativo).
Naquela
altura usavam-se as “pochetes”, onde se metiam as coisas mais pequenas e
necessárias, e eu lá tinha a minha, onde guardava os documentos, o bilhete do
comboio, o dinheiro e quaisquer outros objectos fundamentais (ainda não havia
telemóveis, nem cartões de crédito nem outras “modernices”).
Eu viajava com um
saco com roupa, pouca, apenas o essencial e essa pochete, que inadvertidamente
deixei junto ao saco, em cima, na prateleira para as bagagens, em vez de a
guardar comigo, enquanto dormia.
O comboio ia fazendo algumas paragens, e as pessoas abriam a
porta do compartimento para ver se havia algum lugar vago e voltavam a fechar;
claro que dormindo, ouvíamos esse barulho, mas nem ligávamos.
O que é um facto, é que ao chegar a Belgrado, pelas seis da
manhã, o saco estava lá, mas a pochete alguém a tinha levado (estava mesmo à
mão de semear…).
E assim me vi na estação de Belgrado,
indocumentado, teso e sem
bilhete para seguir viagem (o bilhete era Covilhã/Atenas/Covilhã e mencionava
as cidades que eu tinha planeado visitar, e tinha uma duração de cerca de dois
meses).
Recordo-me tão bem de tudo, como se passou, em Belgrado
quando cheguei : um gabinete da Polícia ainda dentro da gare, onde me dirigi,
para lhes pedir que me ficassem com o saco e me ajudassem a procurar a
embaixada portuguesa.
Mas ninguém falava inglês e o diálogo tornou-se
impossível, só os ouvia repetir “Portugália, Portugália” e não acederam a
guardar o saco.
Claro que junto a uma gare principal de uma grande cidade há
sempre algum hotel, e vi logo um, mesmo em frente, um hotel pequeno, mas alguém
devia falar inglês…
Para lá me dirigi e o recepcionista – rapaz novo e falando
mais ou menos inglês, foi de uma imensa simpatia: acedeu a guardar-me o saco,
deu-me uma planta da cidade e mostrou-me onde era a embaixada (longe, longe
dali) e dizia-me que devia tomar o autocarro tal até certo sítio e daí um outro
até lá.
Simplesmente eu não tinha dinheiro e disse-lhe que ia a pé, até porque
tinha muito tempo até a embaixada abrir; que não, era longe, devia apanhar o 83
(agora sei que o primeiro autocarro era esse porque conheço bem a zona) e
depois o outro e não passava disto. E foi quando me estendeu uma nota de alguns
dinares para os bilhetes (ele não me conhecia, mas até lá ficava o saco, pelo
que ele confiava em mim).
Lá apanhei os autocarros e realmente eram uns quilómetros
para lá chegar (Belgrado tem uma avenida com 8 quilómetros).
Enfim cheguei ao
edifício da embaixada, muito pobrezinha, diga-se de passagem, muito cedo e
sentei-me por ali à espera que abrissem no horário estabelecido; quando tal
aconteceu, subi umas escadas e deparou-se uma moça, louraça bem ao estilo
eslavo e eu com um “bom dia” bem português que ela não entendeu; vá lá que
falava inglês, e lá lhe expliquei a minha triste situação.
Levou-me à presença de um senhor, mais ou menos da minha
idade –jovem portanto – português que me pediu para lhe relatar a situação. Eu
sabia que na altura o embaixador português na Jugoslávia era o escritor Álvaro
Guerra, pessoa conhecida e cujo cargo era apenas político, pois não era da
carreira diplomática.
Não estava à espera de ser recebido por ele,
naturalmente, mas o individuo era alguém importante lá na embaixada e ouviu-me
bem e depois começou uma conversa simpática, de onde eu era, onde tinha
estudado, isto e mais aquilo e concluímos que tínhamos frequentado Económicas
(ISCEF) nos mesmos anos, embora não nos conhecêssemos pessoalmente , mas tínhamos
conhecimentos comuns, de algumas pessoas que até ocupavam lugares de destaque
na altura, em Portugal.
Isto para dizer que o homem me pôs completamente à
vontade, me disse que aquela conversa tinha como fim saber se a minha história
era verdadeira ou não e que iria tratar de imediato de me arranjar um novo
passaporte com a validade de 15 dias, mais que suficiente para chegar a
Portugal, um bilhete de comboio até à Covilhã e me disponibilizaria algum
dinheiro para eu aguentar a viagem de regresso.
Claro que o bilhete indicava
Veneza e Marselha como eventuais paragens, mas eu não acreditava que pudesse
visitar essas cidades, naquelas condições. Quando eu, chegado a Portugal
liquidasse o empréstimo do dinheiro emprestado e do preço do bilhete, podia
arranjar um novo passaporte normal aqui.
Entretanto e como aquilo ia demorar
umas horas, o homem, super simpático convidou-me a tomar o pequeno almoço com
ele, num hotel que ainda hoje existe e que no momento era um dos melhores – o Slavia
– no centro da cidade e que na altura era quase só para pessoal diplomático.
Tito tinha morrido havia três meses e a
Jugoslávia era um país comunista, apenas um pouco afastado da ortodoxia soviética.
Foi um dos melhores pequeno almoços que
já tive e a companhia foi excelente.
Enfim, uma horas mais tarde, com documentos, bilhete e algum
dinheiro, regressei ao hotel onde deixara o saco e lá fiquei hospedado duas
noites, pois não quis deixar de visitar Belgrado.
Esta história é para mim muito importante, pois foi o meu
primeiro encontro com uma cidade que tantos anos depois se tornou uma das que
mais amo, por razões que toda a gente conhece.
Na altura, fiquei com uma noção
de uma cidade cheia de contrastes, mesmo a nível do povo, mas não podemos esquecer
o contexto político da época – 1980 e o facto do líder carismático de quase
quarenta anos de poder ter morrido havia três meses.
Pouco mais visitei que a
zona central da cidade, mas recordo perfeitamente alguns locais, que depois
revisitei, como é óbvio.
Pela primeira vez estava num país comunista e em que
era muito difícil a comunicação, já que muito pouca gente falava inglês, já que
a segunda língua depois do servo-croata era o russo e depois o alemão, e eu
dessas não percebia, nem percebo patavina.
Dois dias depois lá estava na velha gare de Belgrado (bem precisa
de reforma urgente) a apanhar o comboio na direcção de Veneza; será que iria
parar lá para visitar um dos sítios mais emblemáticos da minha programação?
É o que vamos saber na terceira e última parte desta viagem
memorável…
E está prometido um episódio à parte para “aquela noite num
hotel de Atenas”…
não deixa de ser comovente pensar que tu tiveste esta experiência em Belgrado, numa época em que praticamente ninguém conhecia e visitava os países pda chamada cortina de ferro, e que tantos anos (e tantos mundos) depois, Belgrado seja uma das cidades da tua vida.
ResponderEliminarmuitas vezes penso que a vida brinca connosco, quase como um gato brinca com com um novelo que se vai desfiando à medida que ele brinca. às vezes prega-nos partidas, mas a maior parte ensina-nos lições.
como percebes, gostei muito desta parte do teu relato desta viagem. deixou-me nostálgico, e fez-me sentir ternura por esse homem jovem, perdido na estação de comboios, indocumentado e sem dinheiro, mas sempre seguro de si e sem medo da vida.
estou ansioso por ler as partes que faltam do relato da viagem
abraço grande
Miguel
ResponderEliminarpor alguma razão eu dizia no texto da última entrada que esta viagem foi extremamente enriquecedora pelo conjunto de situações que motivou.
Agora imaginas como me senti ao voltar áquela estação e áquele pequeno hotel, 26 anos depois...
E a estação está na mesma, imponente por fora mas muito degradada no seu interior.
Belgrado, no seu conjunto, daquilo que vi nesse distante ano de 1980, mudou imenso, muito mesmo, apesar de pelo meio ter sido intensamente bombardeada pela NATO durante o conflito dos Balcãs.
Abraço amigo.
Tenho horror a roubos desse género durante as viagens. Felizmente nunca me aconteceu. Ficar numa situação como a que tu ficaste deve ser das coisas mais angustiantes que há, mas tu até te 'desembrulhaste' muito bem.
ResponderEliminarAbraço.
Arrakis
Eliminarninguém me mandou ser estúpido...
Nas situações complicadas, geralmente desenrasco-me com alguma facilidade, pois sou muito racional nesses momentos, ao contrário de outras situações menos graves em que o coração por vezes influi, e não devia.
Abraço amigo.
Mas que aventura! Que eu, francamente, não invejo:))))))
ResponderEliminarAguardo um final feliz!
Justine
Eliminartudo está bem, quando acaba bem...
Beijinho.
a escrita é tão vívida como a maneira como descreveste. sendo ilustrada com fotos, fica mais rica a aventura :) e que aventura!
ResponderEliminaressa pochette foi muito usada por um tio meu, por isso estou bem familiarizada com ela. e ainda se vêem, de vez em quando.
(ansiando pela última parte :D)
bjs.
Margarida
Eliminarconcordo que as fotos tornam a descrição mais nítida, mesmo que não sejam exactamente as que eu quereria; por exemplo uma foto da então embaixada portuguesa, ou uma foto do Bulevard Aleksander, que é o que tem os 8 quilómetros.
Etenção que a última parte é o regresso de Belgrado a casa e não o episódio de Atenas (esse é um "apêndice"...
Beijinho.
Marija Šerifović - Molitva não foi canção de festival? Já a conhecia mas francamente não me lembro onde a ouvi pela primeira vez.
ResponderEliminarBelgrado, que a primeira vez que visitaste na te deixou boas recordações, acabou por ser um marco importante na tua vida. Se calhar até seria esta história que aprofundou a tua amizade com o Déjan, não?
Beijinhos
Mary
Eliminarsim, foi a canção que venceu o festival em 2007.
Quanto a Belgrado, não digo que os acontecimentos de 1980 nesta cidade tivessem qualquer influência no relacionamento com o Déjan, mas que aguçou o meu apetite de rever a cidade, objectivamente, é um facto.
Beijinho.
Sempre tive curiosidade de conhecer a antiga Jugoslávia, nos dias de hoje são uns seis países :)
ResponderEliminarAbraço amigo e aguardo pelos próximos desenvolvimentos :)
Francisco
Eliminarainda me falta conhecer dois: a Macedónia (que ia conhecendo, se não tivesse resistido a um assédio sexual no comboio, que me faria parar em Skopje) e o Montenegro, que dizem ser muito bonito, não a capital, mas a costa adriática.
Abraço amigo.
Mas que grande aventura, João!
ResponderEliminarCatso
Eliminargrande e enriquecedora, como tudo o que não é fácil.
Abraço amigo.
Então são estas as primeiras "Razões do Coração"! É, como diz o Miguel acima, uma das partidas que o destino prega - se o deixarmos...
ResponderEliminarOra aguardemos então "le grand" final!
Não sei, João...
Eliminarnão acredito no destino, mas ele às vezes manifesta-se de uma forma tão evidente, que dá que pensar.
Não há "grand final", apenas a conclusão da viagem, com a mostragem de uma faceta minha que até a mim, me surpreende, agora à distância de tantos anos.
Abraço amigo.
Marechal Tito, personagem emblemática...
ResponderEliminarBem, isso é que foi uma aventura e pêras! Meu Deus, não me consigo imaginar sem dinheiro e sem documentação no estrangeiro. Eu creio que morreria, mesmo sabendo falar inglês. Morreria de medo e de susto. :D Acho que mal me visse na embaixada de Portugal, agarrar-me-ia à primeira pessoa, a chorar (sim, ainda sou muito crianção). Lol
abraço.
Mark
ResponderEliminaruma personagem emblemática e muito controversa; tenho sabido de muita coisa sobre a vida dele que desconhecia. A visita que fiz ao deu Museu e onde está sepultado é imperdível.
Sobre o resto do teu comentário,tive que me rir...
Sabes que eu penso que tu deverias fazer uma viagem deste tipo, pois far-te-ia muito bem, apesar de estares muito melhor, mesmo muito, do que estavas quando começaste o blog.
Uma pessoa deve estar preparada para tudo...
Abraço amigo.
Com uma vida recheada de aventuras - e desventuras - isto de te veres sem a bendita pochete, deve ter sido um grande susto, bem que podias escrever um livro autobiográfico, João! Tens uma forma perfeita para descrever situações e factos, aliada a uma vida bem vivida! Olha que seria muito interessante, por tudo o que já li de ti, inclusivé aquelas experiências no Ultramar.
ResponderEliminarAs minhas andanças pela blogosfera vão andar mais espaçadas, mas não deixarei de vir ler essa tal "noite num hotel de Atenas"...!:)
Beijinhos.
Tudo de bom para ti.
Olá Janita
Eliminartambém eu estou agora mais demorado a postar do que antes e não há maneira de conseguir pôr o Google Reader em dia.
As minhas aventuras na vida, penso que foram normais; apenas, sendo eu uma pessoa muito activa e de fácil relacionamento,aconteceram-me "mais" coisas e coisas "mais estranhas", hehehe...
Já muita gente me falou no livro, mas não tenho estaleca para tanto. Ficam estas croniquetas...
Beijinho.
Boa tarde, João:
ResponderEliminarJá aqui não vinha há uns tempos e resolvi ver em que pé é que as coisas estavam. Para já, gosto muito desta música de fundo e depois, aquele pontinha de saudade que já tinha de passar por aqui. Li a tua aventura passada nos anos 80 e todas as peripécias que se passarm nesta tua acidentada viagem. De qualquer das maneiras, chegaste a bom porto.
Só quero acrescentar mais um pormenor. É notável a forma como descreves as tuas viagens. Tudo até ao mínimo pormenor e de uma forma verdadeiramente empolgante. É por isso que vou ler o resto.
Um abraço enorme
Isabel
Olá Isabel
Eliminargosto muito de te ver por aqui.
A música tem a ver essencialmente com a última postagem, a do hotel de Atenas, pois adequa-se perfeitamente...
Tenho alguma facilidade descritiva dos factos passados, pois a minha memória não esquece pormenores e daí o "filme" qie vou desenvolvendo, para que quem me leia "veja" dentro do possível as situações.
Beijinho.
É de facto quase inimaginável essa aventura que passaste - numa terra desconhecida, sem dinheiro, sem documentos, só om a roupa do corpo e pouco mais. Soma-se isso à época em que ocorreu e temos aqui uma história fascinante. Acho extraordinário e considero que devias pensar seriamente em escrever uma um livro com os relatos das tuas viagens - "As Viagens da Minha Vida" - pois além da escrita deliciosa, tens episódios memoráveis para partilhar! ^^
ResponderEliminarAbraço amigo :)
Kuma
ResponderEliminarse isso dependesse da vontade de quem me vai lendo, talvez já tivesse sido feito; mas isso implica um empenhamento para o qual não estou de momento preparado. Sei que tenho muito material, não só de viagens como histórias relacionadas com os tempos da guerra colonial e muitas coisas mais.
Gosto muito e tenho alguma facilidade em relatar com alguma nitidez as histórias curiosas das quais fui protagonista, mas isso não chega...Prefiro ir debitando por aqui no blog, sem pressões, estes bocadinhos da minha vida.
Abraço amigo.