Quando regressei ao quartel no dia 26 de Abril de 1974, após uma desgastante operação na mata, durante doze dias, apenas me apetecia beber litros de água, tomar um duche prolongado, ler o correio e descansar. Mas um soldado da secção fluvial, que sempre nos ia buscar nos barcos pneumáticos à outra margem do Lugenda, disse-me no seu “pretoguês”, que lá, no Portugal, tinham prendido o rei, Marcelo, e andavam à porrada; quase que galguei a distância ao quartel e dirigi-me de imediato ao posto de transmissões, onde me confirmaram a existência de uma revolta militar em Lisboa, mas ainda tudo com contornos difusos, pois mensagens oficiais não havia ainda, só “bocas” na linguagem “cifrada” dos homens das transmissões; só pelo final do dia, recebi uma msg secreta do batalhão a informar laconicamente a situação.
É claro que fiquei em ebulição, a aguardar mais notícias, que apenas chegaram três dias depois e que me convocavam para ir a Marrupa, sede do Batalhão, no dia 1 de Maio, para uma reunião urgente. O comandante interino do Batalhão era um major de cavalaria, pouco simpático e bastante ligado ao regime, pelo que nunca esteve perto do movimento dos capitães que deu origem ao 25 de Abril. Tudo o que soube realmente do que se havia passado, foi por intermédio de capitães e alferes milicianos do Batalhão; claro que fiquei imensamente feliz, embora e naturalmente o meu primeiro pensamento não tivesse sido o da conquista da liberdade e democracia, mas sim a hipótese possível de um regresso antecipado a Portugal.
Longe estava de pensar que o 25 de Abril, me daria, ali em Moçambique, enquanto comandante de Companhia tantos problemas, devido essencialmente ao facto de que os homens sob o meu comando serem 95% pertencentes à guarnição local (isto é, viviam em Moçambique) e cerca de 90% serem negros, sendo que os brancos eram ou alferes e sargentos, ou especialistas (saúde, transmissões, administração, intendência, mecânica).
Fiquei a saber dias mais tarde que havia uma entidade nova chamada MFA, naquele caso, de Moçambique, e â qual deveria obedecer como militar, mas simultaneamente continuava a receber directivas operacionais do meu comando hierárquico, o Batalhão, que estranhamente me mandava intensificar as operações ( de carácter ofensivo); assim chegava-se ao absurdo de receber simultaneamente instruções, às quais devia dar cumprimento, completamente antagónicas, tais como reunir os meus homens e explicar-lhes que a Frelimo já não era o inimigo, e Portugal e Moçambique em breve seriam países irmãos, mas logo a seguir , mandá-los para o mato procurar “turras”…Era de ficar completamente desequilibrado e até ter tomado a resolução mais arriscada de todas as que tive de tomar, quase dei em maluco (sobre essa decisão falarei mais tarde).
Entretanto o correio familiar foi trazendo notícias mais concretas e eu assinava um jornal da metrópole que me ia pondo ao corrente, com muito atraso, claro, do que se ia passando. Vivia estes momentos difíceis que me causavam terríveis consequências no campo psicológico, quando o referido Major, foi naturalmente saneado e substituído, provisoriamente por um capitão meu amigo, que um dia , em trânsito no táxi aéreo, passou pela Companhia e ao ver-me assim abatido me obrigou, contra vontade, pois sentia não ser o momento próprio para abandonar o comando, a ir com ele passar ¾ dias a Marrupa a descansar um pouco de todo aquele stress; ficou a substituir-me no comando da Companhia, o alferes mais antigo, um sujeito de que os soldados não gostavam muito, até porque os explorava com um negócio de fotos que havia montado e que obrigava os soldados a pagar-lhe a revelação das fotos e a preços exagerados…
Chegado ao Batalhão, depois de um banho retemperador, de ter vestido roupas “decentes”, bebia um bom “scotch”, aguardando o jantar e uma boa partida de bridge, quando me vieram chamar para ir urgentemente ao posto de transmissões, onde me puseram em contacto com as transmissões da minha Companhia, de onde me informavam, o melhor possível sem cifras, pois o tempo urgia, que deveria regressar sem demoras, pois os soldados tinham-se revoltado contra o alferes, que havia fugido e estava algures escondido e protegido por furriéis, tinham assaltado o paiol do armamento, estavam de posse das armas e tinham invadido o bar de oficiais e sargentos e roubado tudo o que era álcool, pelo que estariam muitos embriagados a disparar a torto e a direito. Informei de imediato o comandante de Batalhão, o qual pediu a Vila Cabral uma avioneta D.O. para me vir buscar a Marrupa, mal clareasse, para me levar de volta à Companhia, e levaria comigo um outro alferes, este da metrópole e que aguardava transporte após as suas férias; é lógico que perdi o apetite do jantar e do bridge e fui incapaz de dormir, só a pensar em como iria resolver um grande problema duplo, no dia seguinte: acabar com aquela situação e reaver as armas, e também põr o alferes contestado a salvo.
Isso ficará para o próximo post, pois este vai longo e ainda há muito que contar sobre estas consequências locais e pontuais, mas difíceis, do 25 de Abril, para mim, enquanto militar numa frente de guerra.
Ena, João, as primeiras portas que Abril abriu no teu serviço militar foram cá uma confusão!...
ResponderEliminarSoldados revoltados, com armas e muito álcool à mistura, podia ter-se tornado explosivo. Deves ter tido uma acção com muuuuuuito tacto!
(Agora a brincar: se a tropa estava bêbada, ainda lhe podia acontecer o mesmo que acontece às moscas, rsrsrsrs, e aí as "munições" eram outras...)
Caro João Manuel
ResponderEliminarna altura das grandes decisões, sou dotado de muita calma e o nervosismo que às vezes denoto no dia a dia desaparece, como por enquanto; liderar homens não é tarefa fácil, nomeadamente quando há vidas em jogo e foi naquela situação e não debaixo de fogo que tive de "puxar" das minhas capacidades, pois para herói nunca tive vocação...
Abraço.
Complicado, muito complicado... Haja sangue frio, tacto e bom senso numa hora conturbado dessas. Sobretudo quando a nossa vida ficou em suspenso a muitos milhares de quilómetros de distância.
ResponderEliminarAbraço.
Caro Oz
ResponderEliminarmuito complicado, sem dúvida, mas sem remédio só a morte, como se diz. Tens toda a razão quando falas em duas condições fundamentais, numa altura destas: sangue frio e acima de tudo, muito, mesmo muito bom senso.
Abraço.
(Aproveito para rectificar no comentário ao J.Manuel a frase "por enquanto" , que, claro deverá ser "por encanto".
A esta distância essa confusão deve fazer rir, mas calculo que, naquela altura deve ter sido realmente complicado.
ResponderEliminarTambém vivi uma situação parecida, por terras timoreses. Embora fosse muito mais novo, não esqueço a confusão que foram os primeiros dias.....
Abraço
Caro Teddy
ResponderEliminarnão sabia que tinhas estado em Timor; grande surpresa...
Mas não na vida militar, suponho...
Abraço.
sou mesmo fã destes teus relatos da guerra.
ResponderEliminarmas a propósito deste episódio que relatas, gostava, caro Pinguim, de te colocar uma questão, que corresponde a uma enorme curiosidade minha.
com base na tua experiência pessoal, qual achas que era o nível de consciência política dos militares, carreira e milicianos, que andavam a combater a guerra em África. há hoje um pouco a ideia de que muitos dos nossos tropas, sobretudo os milicianos, teriam uma consciência crítica em reklação ao regime e à guerra em que estavam envolvidos. de acordo com a tua experiência, isto era mesmo assim? e do outro lado como era? havia militares que lutavam não por simples 'dever de ofício', ou por instinto de sobrevivência, mas com determinação e adesão ideológica, nomeadamente a crença de que se estava a defender pátria e império?
sei que não são questões muito fáceis e percebo se não tiveres 'pachorra' para responder, mas gostava muito de conhecer o teu testemunho em relação a isto.
abraço.
Caro Miguel
ResponderEliminarTerás um pouco da minha opinião pessoal, melhor da minha "não motivação", no próximo post.
De uma maneira geral, as pessoas não iam com a noção de defender a Pátria, mas sim porque a isso eram obrigadas,(a outra opção era emigrar); não digo que não houvesse actos de bravura no terreno, mas mais motivados por situações de camaradagem do que por convicção. Mas o que mais me chocou foi a atitude dos brancos moçambicanos que tinha na companhia, pois além de não terem convicção, ainda se revoltavam por ter que estar ali, já que para eles, a metrópole é que os havia de defender e não eles próprios.
Num futuro post sobre o 28 de Setembro, que passei em Nampula, aprofundarei esta situação.
Abraço.
cá estão os tais posts de que falamos!
ResponderEliminarjá agora quero saber como acabou isso tudo :)
já pensaste mesmo em escrever as memórias? pensa bem... é um documento histórico!
um abraço
Mais um episódio bem interessante das tuas memórias militares. Engraçado que podes encontar muitos casos parecidos na função pública: Há sempre várias pessoas a mandar e cada um manda para o seu lado e ninguém se entende.
ResponderEliminarUm abraço.
Um livro de memórias ASTOR? Bela ideia. Isso é que era João. Mas olha... para mim 25 só há um e não é o de Abril. UPS! :p
ResponderEliminarAquele abraço!
Eu acho que não há nada que eu pudesse escrever que fizesse justiça à experiência que viveste e ao que sentiste enquanto lá fora....
ResponderEliminarPor isso, adopto posição de "espectador" à tua hisória...e peço-te que continues, pois gostei de te ler e de ler este começo! E quero saber o resto...
Abraço:)
Caro Astor
ResponderEliminarsim, é o primeiro desde a nossa conversa, e nesta segunda fase do blog, podes ainda ver mais 2 ou 3; os outros tenho-os recuperados à excepção de um que ficou num espaço de tempo, cerca de um mês, que se não consegui recuperar.
Este episódio por ser bastante desenvolvido, tive que o "partir", até para que os factos me viessem melhor à memória, mas será já no próximo post que o concluo.
Abraço.
Caro Paulo
ResponderEliminarsei que é assim hoje em dia, mas ali havia responsabilidades muito mais importantes, e dessas divergentes ordens poderia eventualmente haver consequências gravìssimas, caso se não usasse de muito cuidado e bom senso.
Abraço.
Caro Kokas
ResponderEliminaro meu livro de memórias teria que ser um "calhamaço", e este assunto da vida militar, apenas um dos capítulos; posso dizer-te que um outro capítulo bem desnvolvido, mas com episódios muito mais divertidos seria o do sexo, eh eh eh eh.
Quanto aos 25, acho que ambos foram necessários.
Abraço.
Caro Hydra a uma tão longa distância temporal, posso assegurar-te que esses tempos, embora muito difíceis me deram um enriquecimento tremendo e muito contribuiram para ser o Homem que hoje sou.
ResponderEliminarO "programa" segue dentro de "minutos"...
Abraço.
Gostei deste post amigo. Aliás, como sabes sou suspeito porque visito assiduamente este canto...Mas este tema seduz-me...
ResponderEliminarComo dizia um dos teus comentadores, "já pensaste escrever umas memórias...?" olha que se ainda não pensaste nisso está na altura... também eu vou aguardar a continuação... Muito bom! Parabéns!
Amigo João
ResponderEliminarembora hoje qualquer pessoa escreva livros (jogadores, actizes e até a Carolina Salgado), não é escritor quem quer, mas sim quem tem veia para tal, o que não é o meu caso; esse livro está bem perceptível na minha mente e gosto de vez em quando mostrar umas páginas a alguns amigos; daí,uma das razões da existência deste blog.
Abraço amigo.
pinguim,
ResponderEliminarPara se escrever um livro de memórias não é preciso ser-se escritor, mas não se tendo veia para tal, apenas torna a tarefa mais sofrível,para quem escreve e para quem lê.Mas há testemunhos que importam ser dados e fazes mal em duvidar das tuas capacidades.;-)
Foram tempos memoráveis em que cada um o viveu e sentiu de forma diferente!
ResponderEliminarUi! O que eu fiz nessa altura!!!!
Caro Rui
ResponderEliminarnão é o caso de duvidar das minhas capacidades; mas uma coisa é ir pondo uns textos pessoais e pontuais, que consigo com a ajuda da memória e de algum prazer de escrita ir dando, como se diz, ao "prelo"; outra, muito diferente será sistematizar, no tempo e dentro do meu "eu", todos esses textos que vou recordando; além de que, segundo a noção, que tenho, totalmente empírica, note-se, é de que não é fácil publicar um livro, a não ser que se seja uma figura pública ou que o assunto seja susceptível de desencadear uma forte adesão de público comprador, o que não se verifica nem num caso, nem noutro.
Abraço.
Então vamos lá saber algo disso, amigo Tongzhi.
ResponderEliminarEu só não inicio aqui um tema do tipo do já "com barbas" - onde estavas tu no 25 de Abril, do Baptista Bastos, porque quase todas as respostas seriam ou "ainda não tinha nascido" ou " era uma pura e adorável criancinha"...
Abraço.
Percebo-te, caro amigo, mas ainda assim creio que quando se sabe partilhar desta forma como o fazes, conseguindo assim suscitar interesse resultando numa leitura atenta por parte dos teus amigos e visitantes, é sinal que, afinal, há público. Mais soubessem da existência deste blog, mais comentários terias e por isso, caro João, para se escrever é preciso algum talento, sem dúvida, mas creio que o tens.
ResponderEliminarOk... poderás dizer-me, quem és tu para o dizer... Responder-te-ia, sou um dos leitores... por si só faz sentido que não ponhas essa ideia de parte. Não sei se me fiz entender com clareza mas, não se escreve para os leitores... simplesmente há leitores para o que se escreve.
Um grande abraço
Amigo João
ResponderEliminargostei muito da tua frase última frase, pois se a primeira parte dela é fundamental, também é verdade que nos congratulamos com aquilo que escrevemos.
A segunda parte da odisseia já está aí...
Abraço amigo.
Pinguim, eu já imaginava que devias ter muitas histórias no teu currículo. Esta não imaginava, que confusão viveste! Confirmo: isto é matéria excelente para um livro de memórias.
ResponderEliminarAbraço
Talvez...um dia...nunca se sabe, amigo Paulo.
ResponderEliminarAbraços.
Pronto, vai escrevendo para ele e depois eu faço a revisão :))
ResponderEliminarDe borla????
ResponderEliminarÉ um ponto importante a favor (aqui junto a veia diplomática com a economia...)
Abração.
oh, de borla? eu não disse que era de borla rsrsrsrs
ResponderEliminarah, essa diplomacia (ou economia) em acção! :))
Pronto, ok, fazes-me um preço de amigo, eh eh eh
ResponderEliminarSe não fôssemos comprometidos, propunha-te outro negócio... como somos, preço de amigo? hum, temos de discutir isso. Só espero não levar uma banhada diplomática:))
ResponderEliminarNão, a amigos não se dão banhadas...
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