terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

A tropa cá do João 12 - (Moçambique 6 – parte 2ª.)

Último pôr do Sol na Metarica

Ainda não eram 7 horas da manhã já eu e o Alferes Mendes, regressado de férias, estávamos na pista de Marrupa, aguardando a D.O. que não tardou a chegar; ao piloto, jovem oficial da Força Aérea, expliquei-lhe sucintamente a situação e disse-lhe que desconhecia qual seria a atmosfera que iríamos encontrar na Metarica (minha Companhia); pedi-lhe para não desligar os motores do avião enquanto estivesse lá, e que, mal estivesse dentro do avião um alferes (não aquele que iria comigo, claro), levantasse voo, logo que tal fosse possível, com ou sem tiros e o transportasse para Vila Cabral (hoje Lichinga).

Um silêncio sepulcral “ouvia-se” dentro do avião, durante a curta viagem, e quando aterrámos, vi que estava pràticamente toda a gente na pista, e foi então que me veio a estranha calma dos grandes momentos: pus a “minha cara nº.3” ( a mais dura que consigo) e vi soldados com armas a gritar “morte ao alferes”, e vi ao mesmo tempo o referido alferes, completamente enquadrado por vários furriéis, mais branco que a cal da parede, a dirigir-se-me; tentou começar a dar-me uma explicação e eu mandei-o calar, sem quase lhe deixar dizer uma palavra e disse-lhe de imediato para entrar no avião, e voltei costas, esperando que este “número” desse certo. Encaminhei-me na direcção do aquartelamento, dizendo alto e bom som, para toda a gente me seguir, pois precisava de falar com toda a Companhia – entretanto dei uma palavra a um dos furriéis que mais experiência (e cabedal) tinha, para ficar por ali e apenas se juntar a nós quando o avião já tivesse levantado voo.

Continuando sempre com a “cara nº.3,, quando tive os homens todos reunidos, mesmo os dos postos de sentinela, comecei por dizer-lhes que tudo o que se tinha passado no final da tarde e na noite anteriores fora muito grave, mas que iria saber pormenores do que havia acontecido, para poder tirar conclusões não precipitadas, mas que havia algo a fazer de imediato e ali mesmo, que era a entrega de todo o armamento, quer o que estava atribuído a cada um, quer aquele que havia sido retirado do paiol, e voltando a nova “encenação”, comecei por mandar buscar a minha arma, que foi a primeira a ser entregue; claro que lhes disse que ficariam apenas de fora oito G-3, uma para cada posto de sentinela e que iam passando de homem para homem, conforme as escalas de serviço, já que não poderíamos prescindir totalmente de uma defesa mínima do quartel, pois estávamos num teatro de operações; após o Alferes Mendes e os furriéis fazerem o mesmo, os homens começaram a entregar o armamento sem a mínima contestação, que ia sendo recebida pelos responsáveis do paiol; entretanto já tinha ouvido o avião descolar e o furriel que ficara para trás juntara-se a nós a dizer com um pequeno gesto que tudo estava bem.

O que tinha decidido fazer, desarmar a Companhia, era um enorme risco, eu estava perfeitamente consciente disso, mas fazia parte de algo mais vasto que já há tempos germinava na minha mente.

Após a entrega das armas, e antes de mandar dispersar a Companhia, sempre com a “cara nº.3” afivelada, disse-lhes que lhes queria perguntar algo, e que queria uma resposta sincera, pois não haveria qualquer sanção para qualquer resposta, mesmo que fosse apenas de um homem; e a pergunta era simples; seria possível que a situação passado com o Alferes pudesse no futuro acontecer em relação a mim? E voltei a frisar que se alguém pensasse que sim, que o dissesse, pois a única consequência seria eu pedir de imediato que me viessem buscar e me substituíssem , pois alguém não tinha confiança no meu comando; e devo dizê-lo que o faria, mesmo ignorando o efeito de tal decisão. Mas, a reacção, confesso que aguardada sem surpresa, foi um imenso grito “Viva o Capitão!”

Serenados os ânimos e resolvidos para já os dois grandes problemas de que falei no post anterior, convoquei uma outra reunião, só com o Alferes e os Sargentos (furriéis incluídos), a quem expliquei, que a partir daquele dia a nossa Companhia, deixava de fazer operações ofensivas, o mesmo é dizer que seriam ignoradas as directivas operacionais do Batalhão, dando no decorrer dos dias em que essas operações deveriam estar a ser efectuadas, as coordenadas dos pontos onde “estaríamos”, pois de tanto percorrermos aquelas zonas sabíamos as coordenadas, com o auxílio dos mapas muito bons que tínhamos; passaríamos a fazer apenas a defesa do aquartelamento; era tão confusa a situação dos comandos militares naquela altura, em que ninguém sabia bem quem era quem, que eu não tinha grande receio de eventuais reacções, e até duvidava que soubessem da minha decisão. Só não lhes disse a razão total desta decisão, pois eu tinha ainda um trunfo a jogar e o efeito desta decisão só surtiria realmente efeito após eu ter uma conversa com um homem ali, da minha Companhia: Era um cabo, africano, que fazia parte da secção de saúde, homem muito calado, tranquilo e que sempre cumpriu as ordens, mesmo quando por escala tinha que ir para o mato, nalguma operação, que levava sempre alguém de enfermagem; mas desde há muito que eu reparei que aquele homem com uma formação e cultura muito acima de quase toda a gente da Companhia, comungava de ideais que não se coadunavam com a sua inserção no exército colonial português, isto é, seria eventualmente apoiante da Frelimo, mas nunca me deu qualquer motivo para o questionar sobre o assunto e assim nada até então, foi por nós falado; pois tinha chegado a altura. Mandei-o chamar ao meu gabinete, e a sós com ele, disse-lhe que a conversa que iríamos ter, não seria entre um Capitão e um seu subordinado, mas sim de homem para homem; afirmei-lhe saber da sua condição de simpatizante da Frelimo e isso apenas por indução própria, como pensava que ele saberia o que eu tinha na minha mente sobre aquela guerra, sendo a minha posição a de cumprir ordens sim, mas acima de tudo zelar pela integridade física dos 200 homens que ali estavam, ele incluído; aquela “guerra” não era a minha, nem a do meu povo, mas a dos governantes do meu país, pelo menos até então. Ouviu-me atenta e interessadamente, sem nunca falar; disse-lhe mais, que tinha decidido, unilateralmente começar a “minha guerra” e que o desarme da Companhia tinha sido um dos passos dela, apenas assegurando a defesa do quartel com 8 postos de sentinela, apesar da vulnerabilidade a que passaríamos a estar expostos, até porque a Frelimo, para pressionar não Portugal, mas as autoridades militares da região, tinha começado a atacar quartéis, táctica que nunca tinham usado antes e que era comum, por exemplo na Guiné e até a aprisionar Companhias inteiras…

Sendo assim, pedia-lhe, e não me interessava como, que fizesse chegar a quem ele entendesse do “outro lado” esta nossa posição, para assim precaver eventuais ataques ao quartel; ele, nada negou e apenas me disse que iria fazer o possível ao seu alcance; selámos o “acordo” com um apertar de mãos.

Concluído este episódio, devo dizer que a totalidade das Companhias à volta da minha foram alvo de ataques, excepto a minha e foi a minha Companhia após grande pressão minha junto do Batalhão, por ser uma Companhia da guarnição normal, a abandonar o mato e a ir para Nampula, em Agosto de 1974; deixámos um grande pano nas instalações dizendo “Oferta da nossa Companhia ao povo de Moçambique”!Apenas para rematar, curiosamente, após algumas semanas desta minha decisão recebi uma directiva do MFA a solicitar, sempre que possível e aconselhável, procurar um entendimento, no terreno, com as forças da Frelimo, para se irem estabelecendo zonas de Paz. Eu já o havia feito antes e disso nunca me arrependerei.

25 comentários:

  1. muito interessante, este episódio. é destas histórias individuais, vividas pelas pessoas no terreno, que se faz a história dos manuais, e é um privilégio podermos lê-las assim, em directo e ao vivo, por quem de facto as viveu.
    por outro lado, não é fácil recordar passagens da nossa vida em que fomos aquilo que fomos capazes de ser, e não a armar em herói para o grande albúm da posteridade. para além de que é o cabo dos trabalhos conseguirmos alinhar o fio das lembranças de forma a poder sair uma coisa coerente e que tenha interesse para os outros.

    por todas estas razões, estou-te muito grato por estas lembranças da tropa do João. como sabes, vivi um lado destas histórias (e um lado que, na altura, tu se calhar nem consideravas muito simpático) e é muito enriquecedor conhecermos o modo como elas foram vividas por outros. sobretudo por aqueles que, como tu, as viveram na pele, por dentro, desterrados no mato.

    há nos homens que têm histórias, e experiências, e memórias, e capacidade de se contarem e assim se confrontarem com a verdade, o verdadeiro estofo dos heróis.
    um abraço grande

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  2. Ah, grande Homem!
    Estou orgulhoso de ti, rapaz: fizeste - com o teu sangue-frio e o teu discernimento - o que muito boa gente era capaz de não ter tomates para o fazer. Jogaste forte (e alto, bem me apercebo), mas fizeste a única coisa que nestas situações se pode e deve fazer: a salvaguarda da dignidade, sem colocar em risco a vida dos homens.

    Bato-te palmas, pá! Muito sinceramente.
    Um abraço.

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  3. Caro Miguel
    ser-me há penoso, de certa forma, quando voltar a estas crónicas, agora só daqui a umas semanas, com o último episódio, da minha estadia em Nampula, onde passei os acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, pois terei de dizer o que penso sobre o que vi, entre a população branca de Moçambique, naquela altura, pois sei que, embora me compreendas, como eu te compreendo a ti, estávamos então em campos bastante opostos.
    Abraço amigo.

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  4. João Manuel, quase me fizeste corar, mas é verdade que eu sou assim, no dia a dia, cheio de nervosismos e medos, mas quando há que enfrentar as grandes questões, quase sem dar conta disso fico possuído por uma estranha calma que me permite equacionar bem as questões e "pegar o corno de caras"; muitas vezes, mais tarde, pergunto a mim mesmo como consegui.
    Foi o caso, aqui, seguir a razão, sem esquecer os sentimentos, NUNCA!
    Abração.

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  5. Falaste às pessoas e não às políticas! E as pessoas percebem isso. Abraço!

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  6. Caro Rato
    tão sucinto, como correcto, o teu comentário.
    Abraço.

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  7. Muito bem jogado, é preciso ter "os ditos cujos" no sítio para enfrentar certas situações e tu lá os tiveste.
    Pela maneira com que lidaste com os teus homens e com a Frelimo penso que terias merecido um cargo de diplomata.
    Um abraço.

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  8. Caro Paulo
    há nesta situação um dado importante, que eu não foquei expressamente no texto, mas está evidente na forma como encaninhei o assunto, e que é o muito grande conhecimento que eu tinha dos homens que comandava, quase adivinhando as reações, bem como al gum conhecimento que eles tinham de mim, pois desde sempre me habituei a jogar claro com as pessoas nas mais diversas situações.
    Abraço.

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  9. Li a 2nda parte...

    Prendeu-me no pensamento esta passagem, que destaco:

    "aquela “guerra” não era a minha, nem a do meu povo, mas a dos governantes do meu país, pelo menos até então".

    O que aqui li, solidifica e adensa o respeito que tenho por ti como Pessoa!

    Abraço!:)

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  10. São estes momentos que fazem do teu blog uma visita obrigatória. Vou ler com atenção...
    abraço

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  11. Um obrigado sincero pelas tuas palavras, amigo Hydra.
    Eu tenho por ti um apreço muito especial, também, acredita, e gostaria um dia de te conhecer pessoalmente; penso que irá haver oportunidades para isso em breve...
    Abraço muito amigo.

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  12. Caro Sócrates
    mais uma vez te digo que um blog é, por excelência, um local de partilhas, de vivências e de Amizades.
    Abraço amigo.

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  13. Pois é, são as pequenas atitudes que fazem a diferença e por vezes fazem toda a diferença.
    Não percs mesmo o Lado Selvagem, vale memso a pena.

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  14. Cara Jasmim
    e as diferenças por vezes são significativas.
    Sobre o filme, claro que terei de ver; já vi "Harrison's flowers" e é realmente tocante no que respeita a todo o trabalho dos repórteres fotográficos num teatro de guerra e o que se pode fazer por amor; mas é algo parcial, pois Vukovar foi uma cidade que os croatas abandonaram completamente à sua sorte, para poderem dedicar-se a outras frentes; será quase impossível encontrar um filme americano, que seja imparcial,quanto à guerra dos Balcãs, acredita-me.
    Olha,dei o endereço do teu blog à minha irmã, que se está a iniciar agora nisto dos blogs, porque acho que ela vai gostar muito do conteúdo do mesmo, o blog dela está mesmo no início, eu estou a judá-la e chama-se "Peripécias"; espero que não te aborreças.
    Beijinhos.

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  15. O grito "Viva o Capitão!" é comovente. Muito bem: fiquei impressionado com a tua astúcia e capacidade de negociação! Devias ter seguido a diplomacia (sem ironia!).
    Um abraço

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  16. Para mim, esse grito já o esperava, totalmente e também tem algo a ver com a mentalidade do negro, claro.
    Se o meu Pai não me tivesse "empurrado" para as economias, talvez tivesse sido na altura, uma das saídas a ponderar, essa da diplomacia.
    Abraços para ti e para o Zé.

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  17. Nestes comentários, esqueci-me de desejar bom dia dos namoradas para ti e para o Déjan!
    Abraços reforçados!

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  18. Ahhhhhhhh, tens toda a razão, o mesmo digo eu, embora saiba que estão separados hoje (só fisicamente) mas bem juntinhos amanhã, lá nos Puortoos.
    Eu já enviei e recebi mais beijinhos hoje do que desde que vim de Belgrado.

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  19. em bom português: GRANDE PAR!

    ehehhe

    mas olha, esse tipo da enfermagem... sabia bem :P infiltrado? informador?

    não era o primeiro!

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  20. Caro Astor
    nunca cheguei a saber, realmente, pois pouco tempo depois destes acontecimentos a Companhia desmembrou-se. Mas fiquei sempre com uma imensa curiosidade em saber isso, embora fosse melindroso estar a "mexer" no assunto...
    Abraço.

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  21. Muito interessante.
    Também andei por lá entre 72 e 74.
    São "estórias" que farão história.
    Abr
    Pedro

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  22. Querido Pinguim,
    Descubro o teu blog aos bocadinhos (há muito e muito bom para ver) e estas incríveis "estórias" que fizeram a nossa história.
    Um granNNnde beijinho para ti

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  23. Caro Pecaaas
    só hoje vi o teu comentário, o qual agradeço; já fiz mais uma actualização desta saga, recentemente.
    Abraço.

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  24. Popelina
    é curioso ver um comentário num post, tanto tempo depois, mas sempre agradável.
    Até descobri um comentário aqui que não tinha tido resposta, vê tu...
    Beijinhos.

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Evita ser anónimo, para poderes ser "alguém"!!!