Ora, entre muitos acontecimentos vividos durante a minha estadia no aquartelamento da Ilha de Metarica (foto), situado no Niassa, perto do rio Lugenda, alguns tiveram como personagem importante, o dito Marua. Depois daquele “confronto inicial”, que relatei, houve um período de estudo mútuo, já que o Marua, era na sua pouca instrução um homem muito esperto.
Lá ia fazendo a sua vida normal, completamente fora dos esquemas tradicionais do regime militar, comandando a sua “tropa fandanga”, constituída pelos “mainatos” (rapazitos civis que estavam no aquartelamento, para, a troco de alguns tostôes, prestarem serviços aos graduados, tais como tratar da roupa, levar material durante as operações no mato, etc.); ele próprio se intitulava pomposamente Brigadeiro daquela meia dúzia de jovens, sobre quem tinha um verdadeiro ascendente.
Já relatei o poder dos olhos de Marua, incisivos e acutilantes; Marua era imponente, e senhor de uma força enorme. Sempre que havia algum problema a resolver na Companhia, pois lá requisitava eu os serviços de Marua e da sua tropa. O qual se sentia muito bem, ao saber-se necessário; e como trabalhavam...
Até que chegou o momento de ir mais além. Marua era útil em muita coisa, e até já o tinha chamado para tarefas de alguma responsabilidade, como fazer de intérprete num interrogatório a uns homens capturados, e foi com surpresa que vi a sua colaboração ir além do pretendido, quando após uma pergunta na sua língua, o vi sorrir e me disse em português: “Meu capitão, o tipo está a mentir, não acredito em nada do que ele conta...”
Assim, um dia fui conversar com Marua, saber da razão das suas fugas, quando ia à cidade, e dos consequentes agravamentos da sua pena; fiquei sabendo que a única razão disso era querer estar com a mulher e os filhos, dos quais me mostrou fotos.
Fiquei ciente de que aquele homem devia ir para casa, juntar-se aos seus, mas a disciplina militar não o permitiria.
Sem lhe dar conta disso, informei-me junto a hierarquias, da forma de resolver o problema daquele homem, e fui informado que ele teria de passar por um julgamento e por uma condenação, embora atenuada, pela sua vida familiar.
Como convencê-lo a ir a julgamento, sem fugir e que teria de passar um tempo na prisão? Depois de algumas longas conversas, lá o convenci, mas, devo confessar, sempre receoso que fugisse de novo.
Chegada a altura, lá foi para a então chamada Vila Cabral, capital do Niassa, para ser julgado; eu já tinha enviado um relatório, o mais detalhado possível, com a situação dele, ao Tribunal Militar, que o iria julgar.
Marua cumpriu o que prometera; não fugiu. Foi julgado e condenado a 6 meses de prisão, que era o mínimo possível para tantas deserções, após o que seria de novo, um homem livre. Aceitou bem o castigo, por duas vezes o visitei, e encontrei-o bem e agradecido, já que a mulher e os filhos o visitavam de vez em quando.
Quando finalizou a pena, regressou à família, e eu, na Companhia, no sítio onde um dia me atirara desrespeitosamente, um prato para cima da mesa, recebi uma carta dele, a agradecer-me tudo o que tinha feito por ele. E mandava-me uma nota de cinquenta escudos moçambicanos, que ainda conservo na minha posse, para me “pagar”.
Bom Marua, o que será feito deste homem, hoje?
Como gostaria de o reencontrar um dia e falar, falar muito dele, de mim, de nós, enfim...da vida.
(Publicado originalmente em 27 de Junho de 2007)
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A utlilização dos textos deste blogue, qualquer que seja o seu fim, em parte ou no seu todo, requer prévio consentimento do seu autor
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caríssimo, continuo a apreciar muito estes teus 'textos de guerra'. acho que é um privilégio poder tomar contacto com um testemunho tão humanamente rico como o teu e, já agora, bem escrito. também acho muito interessante, a avaliar pelos comentários, nomeadamente os do post anterior, a reacção dos teus leitores. prova, mais uma, da extrema utilidade deste teu relato. é realmente uma pena não serem publicados. pelos vistos estamos a atravessar uma época em que já há muitas pessoas a revisitarem as suas memórias 'coloniais', nomeadamente da guerra.
ResponderEliminarmas, como já disse lá em cima, para além do interesse do testemunho, sobressai sempre a pessoa que tu és. admiro-te muito, como sabes, e esta tua tropa tem muito a ver com essa admiração e respeito.
abraço
oops, faltou comentar a foto, que é um belo exemplar da iconografia da guerra colonial. na sua aparente simplicidade, caracteriza um tempo na história de um país, permite muitas leituras. um testemunho importante.
ResponderEliminare se me permites um graça leve e amiga, sim senhor, belas pernocas tinha o capitão ;)
mais um abraço
Olá Miguel
ResponderEliminarde certo modo esperava que comentasses estes textos pois já temos falado nestes tempos e para ti têm um significado especial pois estavas "lá" quando tudo isto aconteceu, embora não como militar.
Agora com esta publicação e com o refazer dos textos perdidos (partes 6 e 7), que publiquei no post anterior, já está no actual blog tudo desde o 6 até ao final (14).
Resta-me pôr aqui os cinco primeiros, que começam com um poema idiota, depois sobre Mafra, a estadia na Guiné, o curso de capitães e finalmente a estadia na Beira, já em Moçambique.
Quanto à foto é uma das poucas que digitalizei, das muitas que tenho, é claro.
E tem várias leituras, concordo; mas a das pernas está "off reccord"...
Abraço grande.
João
ResponderEliminarTodas as guerras deixam feridas e marcas profundas. Quando passa o tempo suficiente, é preciso parar e revisitar as memórias. Faz bem à alma.
E fazes bem em fazê-lo. E as tuas fotos, são documentos históricos.
Bjs
Teresa
ResponderEliminartodas as guerras têm o seu tempo histórico de luto; e esta não foi excepção.
Agora, quase meio século depois de se ter iniciado, é mais do que altura de ela ser dissecada e muitas vezes, melhor que os historiadores ou os profissionais das letras, são os intervenientes com os seus testemunhos pessoais que melhor o fazem.
O meu testemunho é o de o final dessa guerra, já na década de 70 e parece ter contribuído com esta partilha, para um melhor conhecimento, principalmente das gerações mais novas do fenómeno da guerra nas suas várias envolvências.
Beijinho.
E novamente relembrando o meu pai e comparando todos os teus relatos, ele por cada vez que tentava contactar antigos colegas, ficava sempre alegre pois nunca se esqueceram uns dos outros. E acho que devias tentar encontrar esse teu camarada de tropa.
ResponderEliminarFoi muito agradável ler estes últimos dois posts. Além de parte da tua vida, é algo importante da história recente deste Portugal que as novas gerações ignoram.
ResponderEliminarAbraço!
Mais um relato interessante e bem escrito. Acho que o Miguel já disse tudo (mesmo em relação às pernas, rrss), o que mais gosto é de te conhecer melhor, como se estivesse a ouvir estas histórias num serão de convívio... e sabes que adoro histórias, e sendo verdadeiras, testemunhos vividos na primeira pessoa, têm outro sabor:)Se gostavas mesmo de o encontrar, quem sabe não tentas pela net?(não faço ideia se será viável)Beijinho
ResponderEliminarCaro Amigo
ResponderEliminarOra aqui está um exemplo perfeito de que uma acção pode ajudar a mudar a vida de uma pessoa a fazer algo de importante por ela, algo que lhe muda o sentido e destino da vida positivamente.
Quando fazemos o nosso inventário de vida e percebemos que conseguimos esse objectivo, nem que seja apenas com uma pessoa, entendemos melhor o valor da nossa própria existência!
A minha única pena, ao chegar à idade a que cheguei é que tantas e tantas pessoas que conheci se desvaneçam no nevoeiro dos tempos.
Acredito que no entanto tu amigo, que te recordas com frequência deste ser humano tão especial, serás decerto também lembrado por ele.
E seja qual for a distância estarão decerto muitas vezes perto em pensamento!
Um abraço amigo!
Ricardo
ResponderEliminarisso além de ser praticamente impossível, pois nem sei qual era a sua aldeia (apenas sabia que era perto de Vila Cabral) também não me recordo do seu nome completo, apenas Marua.
E focas uma situação que sempre me preocupou: qual terá sido o destino dos moçambicanos negros que serviram as forças armadas portuguesas, quando da independência?
Abraço amigo.
Sócrates
ResponderEliminaresse é um dos pontos mais importantes desta partilha; estou certo de um desconhecimento quase total da geração que agora tem 20 anos sobre estes factos.
Abraço grande.
Eva
ResponderEliminarjá respondi à tua pergunta no comentário que deixei ao Ricardo; e estou certo que o Marua onde quer que esteja, nunca ouviu falar em net na sua vida toda.
Beijinho.
Com senso
ResponderEliminarquero acreditar que sim, que ele me recordará; e isso será a melhor coisa que me poderia acontecer pelo que fiz por ele.
A solidariedade humana até é fácil, mas está tão esquecida...
Abração.
A foto é tua?
ResponderEliminarcomo o tempo passa...
bjs
Não sabia que já tinhas publicado estas maravilhas! Até me arrepiei!
ResponderEliminarVioleta
ResponderEliminar"elas" não matam, mas moem...
Beijinho.
Ângelo
ResponderEliminarsim, uma saga em 14 partes. Da 6ª.à última podes acompanhar neste post, no anterior e nos links que deixei lá.
As primeiras cinco hão-de aparecer por aí...
Abraço amigo.
"há gente que fica na história, na história da gente..."
ResponderEliminarestas tuas lembranças davam para um filme, e mais, uma saga...é daquelas coisas que mesmo com as fotos, mesmo com a descrição que fazes tão bem, não consigo imaginar...
abração :-)
Emanuel
ResponderEliminarque linda frase, meu amigo e que bem se adapta a este texto.
Obrigado.
Abraço grande.
Lichinga, antiga cidade de Vila Cabral. Não consigo, ligar-me à antiga toponímia das cidades... para mim, Maputo e Pemba por exemplo, são cidades renascidas, diferentes do que eram, por isso faz sentido serem reconhecidas como tal! Acredito que o Marua se estiver vivo, saiba o que é internet. Quando regressamos, são muitas as surpresas que nos esperam...
ResponderEliminarÁs vezes aquele percalço inicial é o empurrão que chegue para mudar e abrir as pessoas.
ResponderEliminarMais que uma história de um desacato, pela grandeza da tua acção pinguim, certamente que o Marua guardará ainda hoje os melhores sentimentos a teu respeito. A melhor sorte na demanda de reencontrar o amigo :)
Abraços
Mais um relato fabuloso da tua Tropa, um bocado de história. Seria concerteza interessante saber o que foi feito do Marua e nos dias de hoje porem a conversa em dia.
ResponderEliminarUm abraço.
Será difícil encontrares esse mainato mas ficou o reconhecimento desse homem que tu nunca mais esquecerás. Que saudades dos mainatos dos cipaios, desse povo que chamavam bussais mas que eram puros e tinha uma forma de vida diferente mas que, quanto a mim, mais certa. Trabalhavam para comer e viviam para viver. Beijinhos
ResponderEliminarJuana
ResponderEliminaragora me lembro que Vila Cabral é agora Lichinga e a bela Porto Amélia tem hoje o nome da sua baía, Pemba!
Mas para mim, é difícil associar estes novos nomes aos relatos que faço, pois nesse tempo, não se chamavam assim...
Quanto ao Marua saber hoje o que é Internet, sei lá, até é possível, pois ele de estúpido nada tinha.
Beijinho.
TheMen...
ResponderEliminaraquela primeira situação, de uma forma ou de outra, teria sempre que acontecer; é normal, experimentar quem nos começa a comandar, para sabermos até onde podemos ir...
São quase leis da vida e é com essas situações que aprendemos a viver.
Sei que é impossível, mas gostaria tanto de reencontrar o Marua...
Abraço grande.
Miguel
ResponderEliminarcomo já disse, temo um pouco pela sorte daquela gente; sei por exemplo, que na Guiná Bissau, os "flechas" que eram uma espécie de comandos negros do exército colonial português, foram todos executados depois da independência total do território.
Espero que as coisas em Moçambique não tivessem seguido esse rumo e o Marua esteja hoje feliz, já com alguma idade (era mais ou menos da minha idade), na companhia da família que ele tanto amava.
Abração.
Brown Eyes
ResponderEliminaruma pequena correcção: o Marua não era mainato, era mesmo soldado, mas pela sua condição de rebelde e de ser considerado um "caso perdido", fazia o que queria, e então auto nomeou-se "brigadeiro" dos mainatos (todos jovens de 15/16 anos) e com eles vivia.
o mainato quee me tratava da roupa, e me ajudava a levar as coisas no mato, era um miúdo encantador, que se chamava Jonquinho, e me fazia um nescafé absolutamente espectacular.
Chorou como uma criança, que afinal quase ainda era, quando me despedi dele em Nova Freixo, e queria vir comigo para Portugal...
Beijinho.
Beijinho.
Mais uma bela história, mas, olha, já o procuraste no Facebook? lol
ResponderEliminar;)
Abraço
Félix
ResponderEliminarisso só para rir...
Era bom, que fosse assim tão fácil.
Abraço amigo.
Histórias de vida, que com o tempo passam a ser as nossas rugas e as nossas raízes...
ResponderEliminarAbraço
Justine
ResponderEliminare nunca as esqueceremos.
Beijinho.