“Quinze dias sem telejornais, quinze dias sem net, quinze dias sem telefones. Sul de Espanha e tantas cores a invadirem-me o olhar que por vezes doía; no mar, mais azuis que cores, uma ou várias serras a acabarem ali, onde nadei, como sempre, até esquecer todas as lutas, todos os sons que não os das minhas braçadas ou o do vento a amparar cada uma delas, ou o do vento na areia branca, sem saber por muitos desses quinze dias da importância da cor da areia, esse branco imaculado, esquecido ele também, aparentemente, de lutas, ou mesmo de lutos.
Estava sentada a olhar a eternidade do mar, que desde miúda me oferece paz às pálpebras, quando o meu amigo, que identifico por Z., deu um grito de horror e fez-me olhar para a esquerda.
Num minuto que ficou gravado para sempre nos caminhos da minha memória, vimos o cenário de todos os dias alterado por uma sucessão de crimes cunhados pelo ódio a um ser humano – e ao que ele representava –, que cruzava a areia, todos os dias, com pegadas pretas.
Naquela praia, como em tantas, sem licença administrativa, raparigas e rapazes de várias nacionalidades vendiam fatos de banho, sumos naturais, tudo entre sorrisos e nada lhes acontecia. A autoridade administrativa fechava os olhos aos episódios, porque dá vida à vida dos turistas uma brasileira, por exemplo, se branca, entreter o cenário com os seus produtos exóticos.
Acontece que um dos vendedores era senegalês – chamo-lhe de R., com a sua autorização – vendia, e vende, óculos e música, e num ápice vimos a monstruosa evidência de as suas pegadas na areia serem tidas como sombras sujas, pretas, havia que acabar com elas e com violência. Um homem que vigiava as praias, equivalente no seu ofício a uma autoridade da ASAE, gritou com o senegalês – apenas com este, claro – e disse-lhe que teria de parar de vender na praia. O R. pediu, num segundo, autorização para pousar as suas coisas, não oferecendo qualquer resistência, o que na verdade seria absurdo de imaginar, já que só estava em causa uma contra-ordenação, punível com uma coima, assim, só isto, por mais irritante que fosse recair apenas sobre as suas pegadas a aplicação da lei. Pegadas pretas.
Para nosso horror, o agente sacou do bastão e algemou o R, num acto de violência absolutamente inexplicável, agredindo-o perante os presentes.
O pior estava para acontecer. Um cidadão alemão, que naturalmente representa-se a si próprio, alto, forte, viu a cena, um senegalês algemado, e levantou-se da sua toalha saltando sobre o sacana do preto, porque sim, porque lhe deu um ataque, porque viu ali uma boa oportunidade para exorcizar o seu racismo primário. Nunca, em toda a minha vida, presenciei algo de semelhante.
Para que se perceba, tudo isto se passou em tempo concentrado, não sei dizer dos minutos.
Toda a gente se levantou numa gritaria, mas a única pessoa com coragem física foi o meu amigo Z., que exerceu o que em direito se chama legítima defesa de terceiros, atirando-se, sem pensar em consequências, para cima do alemão, com todas as suas forças, até o afastar do R.
Constitui-me, de imediato, advogada do R. Em meu redor, gritos, protestos, mulheres explicando que nunca tinham presenciado nada de semelhante, ouvia-se “racista”, “porco”, “nazi”, “atenção às crianças”, “tirem as algemas ao preto”.
O R., um senegalês estudante de medicina, de 22 anos, que vem à nossa Europa no Verão ganhar o que pode para concluir os estudos, tinha os olhos afogados em lágrimas, estava perdido de pânico e tentava, no início, incentivado pela gritaria, soltar-se das algemas. Perguntava num gemido se seria preso, se tinha cometido um crime, se sim, qual. Consegui, com algum esforço físico e apanhando uma chapada perdida, agarrar-lhe a face e implorar-lhe que ignorasse tudo o que se passava em redor, falando com ele em francês, para fúria do agente administrativo. Pedi-lhe que me olhasse nos olhos, repeti várias vezes que era advogada, que ele não tinha cometido crime algum, que tinha sido vítima de um abuso de poder inqualificável, mas que se mantivesse calmo, sem um gesto, que não desse um argumento ao agente, o qual estava sequioso por uma agressão para invocar legítima defesa. Prometi-lhe que não sairia de perto dele até ser libertado, pedi-lhe que confiasse em mim e que ignorasse toda e qualquer provocação, porque tudo o que se estava a passar tinha sido devidamente testemunhado e a cada segundo que passava a situação agravava-se para o agente e não para ele.
O R. deu-me a mão livre, respirou fundo, tendo a outra algemada ao agente, manteve-se calmo e deixou-me falar.
Estrategicamente expliquei ao ser que vestia uma farda de autoridade que às vezes naquela profissão geram-se momentos difíceis, mas que todos tínhamos testemunhado que não houvera resistência alguma, pelo que o uso do bastão e das algemas, apenas permitido em caso de agressão, tinha sido ilegítimo, que a observância do princípio da proporcionalidade a que estava adstrito estava totalmente comprometida, pelo que lhe requeria, com educação, que soltasse o R.
O racismo do agente administrativo virou-se então para a minha pessoa, chamando-me de advogada "portuguesa", que embora replicasse ser cidadã europeia, podia falar, falar e falar, e até conhecer a lei espanhola, mas que ele não tiraria as algemas ao preto e eu até podia ir para a cama com ele, que era o que eu faria de melhor.
Mantive a calma, pedindo ao Z. que resistisse à tentativa de nos fazer perder a cabeça, e comuniquei ao agente, num esforço doentio para conter a minha vontade de o agredir, que o dito seria objecto de denúncia à parte, mas que naquele momento estava concentrada no meu constituinte.
Decidi então acompanhar o R até à polícia, dando-lhe o meu braço ao seu braço livre, para compensar a sensação de horror criada pelas algemas postas no outro pulso já dilacerado. Pegadas pretas.
Os gritos eram muitos, muitos, tantos, como sempre, a indignação generalizada, mas quando pedi testemunhas debaixo de um sol castigador, prontas para uma caminhada com quarenta graus por pegada, uma mulher apenas veio comigo e com o Z. até ao fim.
Durante a caminhada senti os meus pés perderem a pele, esqueci-me, no meio da confusão, dos sapatos, mas logo um outro senegalês atirou para frente de mim, num gesto elegante e discreto, um par de sandálias para que eu continuasse a andar com dignidade.
Chegados à polícia, tudo foi relatado, e a conivência de um dos três polícias com o agente administrativo caiu por terra quando denunciei o mesmo pelo que me dissera.
Poupando aqui a descrição dos trâmites legais, realço a ajuda maravilhosa da espanhola que nos acompanhou, seguindo o R para o hospital para tratar do pulso. Foi portanto libertado.
Voltei à praia branca e finalmente chorei. Aquelas horas de contenção pareciam moinhos nos novos passos de regresso a uma toalha esquecida e o meu corpo todo ele um soluço.
Foi então que dei conta de que no caminho para a minha toalha, que sempre escolhe as zonas desertas das praias, há bares bem frequentados, com empregados de múltiplas nacionalidades, mas todos eles brancos.
Tremi o resto do dia.
No dia seguinte apareceu o R. e os seus irmãos. Ao todo, três. Queriam pagar-me honorários, como podiam, com uns óculos escuros. Expliquei ao estudante de medicina que fizera o equivalente ao que um médico tem obrigação de fazer se se depara com alguém doente sem assistência.
Guardo para a minha memória a conversa que se animou, de uma família que conhecia o bairro dos Anjos, em Lisboa, surpreendida por eu conhecer o Senegal e assim falarmos recostados no sabor do dia seguinte das terras de uns e dos outros.
Durante a conversa, esta pergunta:
- Aquilo que a senhora disse é verdade? Eu posso apresentar queixa contra o agente?
Disfarcei a minha angústia ao responder que sim e que contra o alemão também.
- Posso apresentar queixa, eu?
- Posso apresentar queixa, eu?
Aqui está a tua história, R., contada, como te disse que faria, com a tua autorização, e fica por expressar o que não consigo pôr em palavras, o teu olhar maior do que a travessia que fazes todos os anos, e a tua enorme superioridade, ao dizeres que a vida nos devolve o que fazemos, em paz, e de novo a lutar, e certo, como dizias, de que se algum dia aquele alemão te aparecer por destino nas tuas mãos de médico o tratarás com o melhor da tua arte; eis uma lição que deste a tanta gente nas tuas pegadas pretas que continuarão em frente e para cima, numa Europa onde isto é possível, onde isto aconteceu, onde as tuas pegadas ainda têm cor.”
É a segunda vez em pouco tempo que aqui deixo palavras escritas pela mesma pessoa, co-autora de um blog que muito aprecio –
Jugular.
A culpa não é minha; é da autora, a Isabel Moreira, que aqui cumprimento e a quem deixo uma palavra de muita admiração.
Obrigado e que sirva de exemplo esta partilha.