Um silêncio sepulcral “ouvia-se” dentro do avião, durante a curta viagem, e quando aterrámos, vi que estava pràticamente toda a gente na pista, e foi então que me veio a estranha calma dos grandes momentos: pus a “minha cara nº.3” ( a mais dura que consigo) e vi soldados com armas a gritar “morte ao alferes”, e vi ao mesmo tempo o referido alferes, completamente enquadrado por vários furriéis, mais branco que a cal da parede, a dirigir-se-me; tentou começar a dar-me uma explicação e eu mandei-o calar, sem quase lhe deixar dizer uma palavra e disse-lhe de imediato para entrar no avião, e voltei costas, esperando que este “número” desse certo. Encaminhei-me na direcção do aquartelamento, dizendo alto e bom som, para toda a gente me seguir, pois precisava de falar com toda a Companhia – entretanto dei uma palavra a um dos furriéis que mais experiência (e cabedal) tinha, para ficar por ali e apenas se juntar a nós quando o avião já tivesse levantado voo.
Continuando sempre com a “cara nº.3,, quando tive os homens todos reunidos, mesmo os dos postos de sentinela, comecei por dizer-lhes que tudo o que se tinha passado no final da tarde e na noite anteriores fora muito grave, mas que iria saber pormenores do que havia acontecido, para poder tirar conclusões não precipitadas, mas que havia algo a fazer de imediato e ali mesmo, que era a entrega de todo o armamento, quer o que estava atribuído a cada um, quer aquele que havia sido retirado do paiol, e voltando a nova “encenação”, comecei por mandar buscar a minha arma, que foi a primeira a ser entregue; claro que lhes disse que ficariam apenas de fora oito G-3, uma para cada posto de sentinela e que iam passando de homem para homem, conforme as escalas de serviço, já que não poderíamos prescindir totalmente de uma defesa mínima do quartel, pois estávamos num teatro de operações; após o Alferes Mendes e os furriéis fazerem o mesmo, os homens começaram a entregar o armamento sem a mínima contestação, que ia sendo recebida pelos responsáveis do paiol; entretanto já tinha ouvido o avião descolar e o furriel que ficara para trás juntara-se a nós a dizer com um pequeno gesto que tudo estava bem.
O que tinha decidido fazer, desarmar a Companhia, era um enorme risco, eu estava perfeitamente consciente disso, mas fazia parte de algo mais vasto que já há tempos germinava na minha mente.
Após a entrega das armas, e antes de mandar dispersar a Companhia, sempre com a “cara nº.3” afivelada, disse-lhes que lhes queria perguntar algo, e que queria uma resposta sincera, pois não haveria qualquer sanção para qualquer resposta, mesmo que fosse apenas de um homem; e a pergunta era simples; seria possível que a situação passado com o Alferes pudesse no futuro acontecer em relação a mim? E voltei a frisar que se alguém pensasse que sim, que o dissesse, pois a única consequência seria eu pedir de imediato que me viessem buscar e me substituíssem , pois alguém não tinha confiança no meu comando; e devo dizê-lo que o faria, mesmo ignorando o efeito de tal decisão. Mas, a reacção, confesso que aguardada sem surpresa, foi um imenso grito “Viva o Capitão!”
Serenados os ânimos e resolvidos para já os dois grandes problemas de que falei no post anterior, convoquei uma outra reunião, só com o Alferes e os Sargentos (furriéis incluídos), a quem expliquei, que a partir daquele dia a nossa Companhia, deixava de fazer operações ofensivas, o mesmo é dizer que seriam ignoradas as directivas operacionais do Batalhão, dando no decorrer dos dias em que essas operações deveriam estar a ser efectuadas, as coordenadas dos pontos onde “estaríamos”, pois de tanto percorrermos aquelas zonas sabíamos as coordenadas, com o auxílio dos mapas muito bons que tínhamos; passaríamos a fazer apenas a defesa do aquartelamento; era tão confusa a situação dos comandos militares naquela altura, em que ninguém sabia bem quem era quem, que eu não tinha grande receio de eventuais reacções, e até duvidava que soubessem da minha decisão. Só não lhes disse a razão total desta decisão, pois eu tinha ainda um trunfo a jogar e o efeito desta decisão só surtiria realmente efeito após eu ter uma conversa com um homem ali, da minha Companhia: Era um cabo, africano, que fazia parte da secção de saúde, homem muito calado, tranquilo e que sempre cumpriu as ordens, mesmo quando por escala tinha que ir para o mato, nalguma operação, que levava sempre alguém de enfermagem; mas desde há muito que eu reparei que aquele homem com uma formação e cultura muito acima de quase toda a gente da Companhia, comungava de ideais que não se coadunavam com a sua inserção no exército colonial português, isto é, seria eventualmente apoiante da Frelimo, mas nunca me deu qualquer motivo para o questionar sobre o assunto e assim nada até então, foi por nós falado; pois tinha chegado a altura. Mandei-o chamar ao meu gabinete, e a sós com ele, disse-lhe que a conversa que iríamos ter, não seria entre um Capitão e um seu subordinado, mas sim de homem para homem; afirmei-lhe saber da sua condição de simpatizante da Frelimo e isso apenas por indução própria, como pensava que ele saberia o que eu tinha na minha mente sobre aquela guerra, sendo a minha posição a de cumprir ordens sim, mas acima de tudo zelar pela integridade física dos 200 homens que ali estavam, ele incluído; aquela “guerra” não era a minha, nem a do meu povo, mas a dos governantes do meu país, pelo menos até então. Ouviu-me atenta e interessadamente, sem nunca falar; disse-lhe mais, que tinha decidido, unilateralmente começar a “minha guerra” e que o desarme da Companhia tinha sido um dos passos dela, apenas assegurando a defesa do quartel com 8 postos de sentinela, apesar da vulnerabilidade a que passaríamos a estar expostos, até porque a Frelimo, para pressionar não Portugal, mas as autoridades militares da região, tinha começado a atacar quartéis, táctica que nunca tinham usado antes e que era comum, por exemplo na Guiné e até a aprisionar Companhias inteiras…
Sendo assim, pedia-lhe, e não me interessava como, que fizesse chegar a quem ele entendesse do “outro lado” esta nossa posição, para assim precaver eventuais ataques ao quartel; ele, nada negou e apenas me disse que iria fazer o possível ao seu alcance; selámos o “acordo” com um apertar de mãos.
Concluído este episódio, devo dizer que a totalidade das Companhias à volta da minha foram alvo de ataques, excepto a minha e foi a minha Companhia após grande pressão minha junto do Batalhão, por ser uma Companhia da guarnição normal, a abandonar o mato e a ir para Nampula, em Agosto de 1974; deixámos um grande pano nas instalações dizendo “Oferta da nossa Companhia ao povo de Moçambique”!Apenas para rematar, curiosamente, após algumas semanas desta minha decisão recebi uma directiva do MFA a solicitar, sempre que possível e aconselhável, procurar um entendimento, no terreno, com as forças da Frelimo, para se irem estabelecendo zonas de Paz. Eu já o havia feito antes e disso nunca me arrependerei.